A possibilidade de um retorno ao poder é real para a esquerda, mas ele deverá ser feito sobre novas bases. O sucesso da direita está mais na divulgação de uma visão de mundo do que de práticas nos bastidores do poder. Essa é a lição do impeachment.
A esquerda deverá elevar o tom contra o mercado. É preciso denunciar a nova religião neoliberal, distinta das anteriores, que prescreviam proibições (não matarás etc.), porque prescreve o gozo. Mandeville dizia em 1704 que "os vícios privados constituem a virtude pública": a direita sabe que nosso egoísmo faz bem para o mercado, mas, como assinala o filósofo Dany Robert Dufour, o problema dessa lei liberal (não regular nada) é que ela não funciona apenas para a economia de mercado, ela termina atingindo a economia psíquica. "A economia mercantil destrói a economia humana", diz Dufour.
A consequência é que o liberalismo aniquila a noção de interesse público ou coletivo. Por esta razão, vivemos todos os espaços como espaços de guerra, inclusive as cidades. O discurso de esquerda deve elevar o tom na defesa dos interesses coletivos, e não dos privados ou do mercado, e restaurar a importância da política, porque o futuro do liberalismo é transformar-se num novo estalinismo.
Para isso, a esquerda precisa recusar o canto sedutor liberal. Esse foi o erro de Lula e Dilma Rousseff, que acreditaram num mercado que sonha em ser Deus. A esquerda deve atacar o liberalismo como forma de alienação: no passado, a economia estava incluída nas demais relações, sociais, políticas e culturais (Karl Polanyi), agora ela procura dominar todas as demais. Por isso a rentabilidade se apossou das relações humanas e não tem sentido algum mediar relações políticas e humanas pela rentabilidade. Se o político ou o individual só existirem para seguir o mandato econômico, tudo está perdido.
A base de sua crítica deve ser a recusa do conceito de "pleonexia", termo grego que significa "querer mais do que a sua parte, querer sempre ter mais". Para Dufour, ninguém é bom como Rousseau ou mau como Hobbes, mas pode ser "simpático", isto é, ser capaz de pensar em si mesmo, recusar os excessos do capital e pensar para viver com o próximo. "O indivíduo é constituído por partes dos Outros", diz. O tema é importante no cenário eleitoral: na medida em que até as cidades se transformam em mercadorias (basta ver o imaginário das Olimpíadas, onde se vende uma cidade), os candidatos de esquerda devem apresentar propostas de cidades para indivíduos além dos valores de mercado e contra a acumulação do capital.