Porto Alegre já consome água com odor e gosto alterados há mais de um mês. Nos primeiros dias, comentários cotidianos sugeriam as mais inusitadas causas. Com o passar do tempo, o incômodo aumentou, endurecendo as queixas aos órgãos responsáveis. Primeiramente, a resposta havia sido de que a água estava normal. Já nesta semana, temos o indicativo de que uma série de análises estariam sendo realizadas para identificar as causas da alteração.
A gestão da maior parte dos problemas ambientais segue uma lógica similar: eles precisam ser percebidos como danosos ao bem-estar das pessoas de forma direta e dolorosa para que sejam reclamados. Isso é esperado, afinal ninguém reclama de algo que não percebe. Para esses casos, existe um aparato regulatório e de fiscalização ambiental. É necessário identificar e agir antes de o problema ficar grande demais para ser solucionado.
De forma análoga, acontece com problemas de cunho socioeconômico. Porém, o processo de percepção e queixa é diferente. Por exemplo, segundo o relatório Situação Mundial da Infância 2016, da Unicef, é possível que 167 milhões de crianças estejam vivendo em extrema pobreza em 2030, e que 70 milhões morram de causas evitáveis até lá. Os governos e a sociedade precisam reagir rapidamente para que essa tragédia não se confirme.
Para reação, o primeiro ingrediente é a percepção clara do problema e nossa relação com ele. O gosto da água se nota sempre que abrimos a torneira. No mesmo instante, podemos ligar para o DMAE. Agora, você já viu, bem de perto, uma criança passando fome? Consegue apontar um culpado por existirem 167 milhões delas em 2030? Para quem você ligaria, agora, para se queixar disso? Não conseguimos apontar um indivíduo ou órgão. Porém, parece confortável demais dizer que a culpa é do "sistema".
Esse é um foco de discussão do papel do Estado na vida das pessoas. Quando ele não se mostra acessível e claro nas suas ações, ficamos impedidos de compreender os problemas e a nossa relação concreta com eles. Então, prosperam ofertas de solução que não são claras nas suas concepções e funcionamento – distribuindo contas e culpas. Para exercer a democracia de forma plena, precisamos estar conectados e sensibilizados pelos problemas. Caso contrário, não sabemos para quem ligar.