
Com a morte do papa Francisco, a vacância do posto mais poderoso da Igreja Católica – e um dos mais influentes do mundo – suscita questões sobre os desafios que o Vaticano terá de enfrentar. Muitos deles serão vinculados ao perfil do novo pontífice. A Igreja precisará ter um olhar atento a questões internas e externas.
Especialistas e teólogos consultados por Zero Hora ressaltam que o papado de Francisco foi marcado pela simplicidade, acolhimento e proximidade com o povo – sobretudo, os mais pobres e das periferias.
Questões sociais como o protagonismo feminino na Igreja, a paz, a emergência climática e a família também tiveram destaque em suas atitudes e preocupações. A manutenção desses pontos é um dos principais desafios pela frente, e a expectativa é de que, em linhas gerais, sejam seguidos.
Os principais desafios do Vaticano
Manter uma postura ativa na promoção da paz é um dos principais pontos a serem observados, sobretudo em um contexto global de conflitos.
— O Papa sempre é um líder que tenta pacificar os conflitos, que procura a reconciliação dos povos. O papa Francisco nos deixa, nesse sentido, um forte apelo a tornar o mundo um lugar de paz — destaca Dom Leomar Brustolin, arcebispo de Santa Maria e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Sul 3.
Coordenador do curso de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e padre, Rafael Fernandes acredita que deve haver continuidade em relação à preocupação com os mais pobres e à integração da doutrina com a prática da caridade, embora a ênfase possa mudar. A igreja se tornará mais atrativa por meio da prática do que por palavras:
— Acredito que vai haver uma linha de continuidade com o papa Francisco, até porque nós percebemos uma recepção muito grande, não só dos católicos, como também de não católicos, diante de tudo que o papa Francisco fez. Claro, há resistências dentro da própria igreja.
Acredito que vai haver uma linha de continuidade com o papa Francisco, até porque nós percebemos uma recepção muito grande, não só dos católicos, como também de não católicos, diante de tudo que o papa Francisco fez.
RAFAEL FERNANDES
Coordenador do curso de Teologia da PUCRS
Doutor em Teologia e professor do Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUCRS, Edison Hüttner destaca a transformação promovida por Francisco. O teólogo ressalta que o fato de Francisco ter sido o primeiro papa jesuíta e latino-americano abriu precedentes importantes.
Em sua visão, entre os desafios do Vaticano estão como lidar e dialogar com a questão de gênero e a continuidade da abertura iniciada pelo pontífice, especialmente em relação ao papel das mulheres na Igreja.
— É questão de tradição, mas ele quer quebrar essa tradição e mostrar que é possível um papel mais destacado, mais valorizado da mulher na Igreja. Isso é uma coisa muito importante, e acredito que já está no tempo para esta transformação — frisa.
Para Fernandes, a discussão deve continuar a acontecer – e com maior peso, devido à demanda da sociedade.
Os desafios incluem temas sensíveis à instituição, como o acolhimento à população LGBT+, questões pertinentes à família e ao acolhimento dos casados de segunda união – que o Papa tratou com cuidado, levando o debate a instâncias da igreja, aponta o padre Sergio Eduardo Mariucci, formado em Teologia e reitor da Unisinos:
— Espera-se que o próximo Papa dê continuidade e consiga dar respostas a essas dimensões mais sensíveis do atendimento e do acolhimento pastoral — declara.
No aspecto ambiental, Mariucci não vislumbra possibilidade de retrocesso. A expectativa é de continuidade do posicionamento em relação a modelos alternativos de economia e de engajamento em questões climáticas e da justiça socioambiental.
— Eu traria essas duas expectativas: de dar continuidade a temas sensíveis que foram propostos ao debate e a esse posicionamento da igreja em relação à doutrina social — resume.
Outro desafio é o do diálogo inter-religioso, segundo Hüttner:
— Se a sociedade vê que o Papa está em diálogo com as outras religiões e vice-versa, isso quebra muitas lacunas e preconceitos, dizendo que existe relação de diálogo.
Outros pontos a serem enfrentados
A Igreja Católica tem dificuldade de penetrar nas classes mais pobres e deve buscar se fazer mais próxima, indica o padre Rafael Fernandes. Além disso, a preocupação com a perda de fiéis em certas regiões, como a Europa e o Brasil, é um desafio permanente, principalmente com o crescimento de igrejas neopentecostais.
O católico aponta a necessidade de tornar o Evangelho mais convincente no mundo atual, por meio da acolhida. Há, ainda, crescente preocupação com aproximar as pessoas por meio dos novos meios de comunicação e no mundo digital, conforme Fernandes. A harmonia interna na igreja é também fator crucial para uma visão positiva por parte de quem está de fora.
A necessidade de formar novos líderes religiosos para dar continuidade à instituição é outra questão que merece atenção, segundo o professor Edison Hüttner. E alerta para a necessidade de cuidar da saúde dos papas, que assumem o posto já em idade avançada e têm de enfrentar agendas intensas.
A condição humana e o sentido da vida em meio aos avanços tecnológicos são desafios que se apresentam cada vez mais, conforme Dom Leomar.
Com avanços em termos de legislação para coibir os crimes, seguir com a valorização da escuta de pessoas feridas – como na questão dos abusos e da pedofilia – também se torna fundamental. É imprescindível que se mantenha a promoção de uma administração transparente e sustentável, com combate à corrupção.
Além disso, a instituição deve seguir buscando ser cada vez mais coerente entre a fé e a vida – isto é, entre o ensino e a prática, defende Dom Leomar. Será preciso fazer com que a fé chegue até as crianças, os jovens e os afastados da Igreja. É preciso manter uma identidade católica forte, mas que dialogue com o mundo atual.
Expectativas em relação ao perfil do novo papa
O papado de Francisco foi marcado por um perfil mais aberto, com discussões de temas sensíveis para a Igreja. A escolha e o perfil do próximo pontífice, no entanto, são difíceis de prever. A escolha sempre surpreende, segundo Dom Leomar. Além de ter levado elementos da América Latina para o pontificado, Francisco tornou o colégio cardinalício menos eurocêntrico, o que pode influenciar o cenário atual.
Muitos têm um perfil parecido com o de Francisco, voltados a uma linha de abertura aos temas sensíveis e atenção aos problemas da sociedade, como as questões da migração – o que deve ter continuidade, na visão do padre Rafael Fernandes, da PUCRS. O professor ressalta, porém, que cada papa tem o seu próprio perfil, trazendo novidades, e com influência do lugar de origem.
Todo mundo espera que seja um papa que tenha essas características do papa Francisco, e que não seja conservador, que seja uma pessoa aberta aos novos tempos.
EDISON HÜTTNER
Doutor em Teologia e professor do Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUCRS
O professor Edison Hüttner expressa a expectativa de que o próximo papa siga o legado de proximidade e abertura de Francisco, embora reconheça que cada pontificado tem seus próprios desafios:
— Todo mundo, me parece, está querendo um papa como ele, paternalista. Todo mundo espera que seja um papa que tenha essas características do papa Francisco, e que não seja conservador, que seja uma pessoa aberta aos novos tempos.
Após um líder tão carismático, que conquistou multidões, a probabilidade é de um pontífice um pouco mais moderado ou de transição, pondera o padre Mariucci:
— Acho que, hoje, a grande preocupação da Igreja é dar continuidade ao legado do Papa Francisco e zelar pela unidade da Igreja.