
Dois episódios recentes ocorridos na Venezuela foram coincidentes no tempo e estão alinhavados no significado. O primeiro foi a morte de um homem na fila do mercado, onde penava havia cinco horas para comprar farinha. O segundo é motivo de protestos mundo afora: o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) assumiu as funções do Legislativo. A afinidade nos significados se dá porque eles deixam definitivamente escancarado que a Venezuela vive um caos socioeconômico (com pessoas morrendo na fila) e institucional (com o Legislativo cassado pelo Judiciário totalmente cooptado pelo Executivo). E conclusão a que analistas têm chegado mediante tão caótica situação é a de que o país do Caribe sul-americano se consolida como uma ditadura.
Com os três poderes rompidos, desabastecimento de 80% dos produtos básicos e inflação anual projetada em 1.600% para 2017, os venezuelanos nitidamente chegaram ao seu limite, e o mundo se mostra aflito. Se nas ruas de Caracas, desde quinta-feira, há protestos e rompimentos de vias públicas, no Exterior as manifestações partem de, entre outros organismos e países, Estados Unidos, Nações Unidas, Organização dos Estados Americanos (OEA), União Europeia (UE), Brasil, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Espanha e Peru, cujo presidente, Pedro Pablo Kuczynski, retirou "definitivamente" o embaixador de Caracas.
O discurso do presidente Nicolás Maduro continua sendo o de atribuir o drama vivido no seu país ao "império" e àquilo que ele define como "seus lacaios", entre os quais ele costuma citar o secretário-geral da OEA, o uruguaio Luis Almagro. Os analistas lembram, porém, que esse mesmo Almagro era chanceler do ex-presidente uruguaio José Mujica, tão festejado pela esquerda e que se contrapôs ao impeachment da brasileira Dilma Rousseff.
Leia mais sobre a Venezuela
Reportagem especial sobre a Venezuela 1
Reportagem especial sobre a Venezuela 2
Reportagem especial sobre a Venezuela 3
Em vídeo, o que vimos na Venezuela
As palavras que chegam de fora são a de que houve "autogolpe" (Almagro) e "rompimento da ordem constitucional" (Itamaraty). E as críticas são acompanhadas de duas recomendações básicas: que se estabeleça um calendário eleitoral – com a realização de pleitos que já deveriam ter ocorrido e em que o chavismo era dado como perdedor – e que os cerca de cem presos políticos do país sejam libertados imediatamente.
Líder opositor moderado, Henrique Capriles pediu "socorro".
– A comunidade internacional precisa de mais provas para terminar de fixar uma posição unânime e firme de que na Venezuela temos um governo à margem da Constituição? Na Venezuela já há uma ditadura – disse ele.
O governo venezuelano contesta que episódios como a cassação do Legislativo, o cancelamento de eleições e a manutenção de presos políticos configurem uma ditadura. Nega que tenha havido golpe de Estado no país e promete reprimir os protestos crescentes que se espalham pelas ruas do país.
"É falso que tenha se consumado um golpe de Estado na Venezuela. Pelo contrário, as instituições adotaram corretivos legais para deter a desviada e golpista situação dos parlamentares opositores declarados abertamente em desacato com as decisões do TSJ", diz comunicado do governo no qual rejeita as condenações internacionais, definindo-as como "ataque dos governos da direita intolerante e pró-imperialista dirigidos pelo departamento de Estado e os centros de poder americanos".
Carolina Pedroso, mestre e doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas e especialista em Venezuela atribui ao governo e também à oposição o ponto a que o país chegou. Critica ambos por terem, em diferentes momentos históricos, promovido rupturas institucionais.
– Ambos empunharam a pá que soterrou o regime democrático venezuelano e, como tal, demonstram que o retorno da democracia ao país não acontecerá somente com uma mudança de regime, mas com a reconstrução de forças políticas verdadeiramente republicanas, o que não se vê no horizonte atual – diz ela.
O historiador argentino Carlos Malamud, especialista em América Latina, lembra de frases ditas por chavistas, como "chegamos para ficar", "o poder não se compartilha nem se reparte" e "governaremos pelo menos por 500 anos", para sustentar que o caminho antidemocrático era previsível.
– Quando Hugo Chávez estava no governo, o regime bolivariano podia se dar luxos democráticos, algo totalmente vetado ao "chavo-madurismo", que sofre na carne a retirada do apoio popular – diz Malamud, lembrando o cancelamento de eleições e do referendo revogatório previsto constitucionalmente para a metade do mandato.
Mediante a situação criada e a resistência do governo a dialogar, Almagro pediu ao Conselho Permanente da OEA que convoque sessão de emergência para avaliar a crise política na Venezuela, conforme o artigo 20 da Carta Democrática Interamericana. Em comunicado, Almagro justificou a convocação dizendo que o governo dá "golpes com os quais o regime subverte a ordem constitucional do país e acaba com a democracia".