Um tema próprio do Século 21, época de alardeados avanços nos direitos individuais contrapostos a reações conservadoras, ecoa desde a Argentina para toda a América Latina e a Europa. A partir de uma sequência de crimes, os argentinos foram às ruas gritar que a violência contra as mulheres precisa ter um basta. É um alerta coletivo contra o feminicídio, cujo clímax ocorreu no último dia 19. Na ocasião, milhares de mulheres cruzaram os braços entre as 13h e as 14h em uma "greve nacional". Três horas depois, vestidas de preto, marcharam sob chuva forte, portando cartazes e gritando frases contra o machismo e a favor dos direitos das mulheres, entre o Obelisco e a Praça de Maio, em frente à Casa Rosada – sede do governo.
O motivo pontual para o protesto foi a tortura, o estupro e o assassinato de Lucía Pérez, uma garota de 16 anos, por três homens. A organização Ni una menos (Nem uma menos, em português) liderou a paralisação, que teve adesões em todo o país.
A comoção, mais uma entre as que se tornaram símbolo em uma Argentina chocada pelo machismo, correu o mundo, do Chile à Espanha, passando pelo México. No mesmo dia, no Brasil, manifestação em São Paulo apoiou a mobilização argentina. No Rio de Janeiro, as frases de alerta usavam o nome da ONG de Buenos Aires, "Nenhuma a menos", e "Vida nós queremos". Foram palavras gritadas em um coro que uniu homens e mulheres no centro da cidade.
– Nosso ato foi organizado contra a barbárie do feminicídio, contra a cultura do estupro, em um movimento de solidariedade. Nossa luta tem de ser uma só – explicou Clara Saraiva, organizadora do ato carioca – que, segundo ela, reuniu 3 mil pessoas.
A cientista política Telia Negrão, coordenadora da ONG Coletivo Feminino Plural, já realizou um estudo comparativo entre Brasil e Argentina. Constatou que o movimento no país vizinho se deu na esteira de uma cultura que propicia organizações mais autônomas de mulheres, enquanto no Brasil elas tradicionalmente ocorreram junto ao Estado, institucionalizado. Telia não contesta essa institucionalização, mas alerta para a importância de haver, também, autonomia nos movimentos.
– Tentamos entender o que elas têm que a gente não tem. As leis contra a violência às mulheres lá são mais antigas e há um acúmulo maior de discussões – diz ela.
Contrariado porque menina queria estudar
De qualquer forma, Telia agradece pelo protagonismo argentino.
– Qualquer reação é importante para promover movimentos de alerta. Devemos ver o que ocorre na Argentina. Aqui no Brasil, há um avanço de forças conservadoras e fundamentalistas, inclusive movimentos que criticam os direitos humanos. O alerta delas deve ser ouvido com atenção – analisa a cientista política.
Na Argentina, Catarina Muñoz tem uma página no Facebook para manter viva a memória da sua filha, Suhene Muñoz. A jovem foi assassinada pelo namorado em 2014, aos 26 anos, quando ambos voltavam de um jantar no qual comemoraram o aniversário do relacionamento – e a perspectiva do casamento marcado para dezembro.
Catarina conta que o namorado da filha, Damián Loketek, ficou contrariado quando a garota disse, voltando do jantar, que queria estudar para uma prova na Faculdade de Veterinária da Universidade de Buenos Aires (UBA). Tomado de raiva, Loketek, que luta boxe, "passou a espancar" a filha de Catarina. Suhene teve trombose cerebral e hidrocefalia. Ficou meses em tratamento, mas acabou morrendo.
– Na Argentina, policiais perguntam à mulher o que fez para apanhar – diz ela.
São casos assim que fazem o país viver um paradoxo: manifestações gritam contra o feminicídio nas ruas das cidades, mas os casos se repetem. O assassinato de Chiara Páez, 14 anos e grávida, em 2015, provocou o começo dos protestos. O de Lucía Pérez levou à marcha do dia 19. Mas, três dias depois da greve e da caminhada, um triplo feminicídio ocorreu em Mendoza. Um professor de artes marciais assassinou sua ex-mulher, a tia e a avó dela. Matou-as a facadas depois de discussão sobre a paternidade de uma menina de sete meses.
Casos que marcaram
- Melina Romero, 17 anos, vítima de abuso, espancada e jogada no lixo, foi vista pela última vez em 23 de setembro de 2014 – data do seu aniversário. Seu corpo foi encontrado um mês depois, dentro de um saco de lixo às margens de um córrego em José León Suárez, periferia de Buenos Aires. Causa da morte: asfixia.
- Chiara Páez, 14 anos, grávida, foi espancada até a morte, e seu corpo foi enterrado no quintal da casa dos avós do namorado de 16 anos, que confessou o crime, em 10 de maio de 2015 – o fato ocorreu em Rufino (província de Santa Fé). Um grande protesto foi realizado, para Chiara, em 3 de junho de 2015.
- Daiana García, 19 anos, teve o corpo encontrado em um saco de lixo na localidade de Llavallol, província de Buenos Aires, em 14 de março de 2015. Seu assassino teria se suicidado em seguida, jogando-se em uma ferrovia. Um dia antes, ela saíra de casa para se submeter a uma entrevista de emprego.
- Micaela Ortega, 12 anos, foi vítima de uma das maiores preocupações de pais na era das redes sociais. Após desaparecer em 23 de abril de 2016, teve o corpo encontrado em um descampado de Bahía Blanca. O suspeito é Jonathan Luna, 26 anos, que a enganou por meio de um perfil falso no Facebook, dizendo-se uma menina.
- Lucía Pérez, 16 anos, drogada, torturada, estuprada e assassinada por empalamento, morreu em Mar del Plata, em 8 de outubro, provocando a greve nacional de mulheres. Os supostos assassinos foram presos, tentaram dizer que ela havia morrido de overdose. Conheceram-na no dia anterior, em frente à porta da sua escola.