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Enquanto a Ucrânia ferve numa disputa que remonta à antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a Venezuela vive confronto de nítido viés ideológico, outras regiões historicamente conflagradas, em especial o Extremo Oriente, passam por um momento de reacomodação pós-Guerra Fria.
No último dia 11, dirigentes de China e Taiwan tiveram, em Nanquim, o primeiro encontro desde a guerra civil de 1949. Foram quatro dias de conversações entre o chinês Wang Yu-chi e o taiwanês Zhang Zhijuni. Tratou-se da continuação de contatos que ocorriam de forma discreta, apesar de ousada, desde maio de 2008, quando Ma Ying-jeou foi eleito presidente da ilha de 23 milhões de habitantes. Voos regularem passaram a encurtar distâncias, e o fluxo comercial entre as duas partes dobrou. Em 2013, chegou a antes inimagináveis US$ 197 bilhões. Em 2010, China e Taiwan já haviam firmado um acordo comercial, sustentado por organismos não oficiais. No ano passado, a ilha capitalista recebeu 3 milhões de turistas oriundos da China, país de 1,4 bilhão de habitantes, que passou por uma revolução comunista em 1949, liderada por Mao Tse-tung. Oficialmente, Pequim não considera Taiwan um país independente. Reclama seus limites como sendo territórios seus. Sendo assim, o evento do dia 11 não teve bandeiras oficiais nem títulos que identificassem os participantes como autoridades de países soberanos.
Também no Extremo Oriente, Coreia e Coreia do Norte vivem seu momento de distensão, e já se começa a falar numa remota reunificação, apesar dos exercícios militares conjuntos com os Estados Unidos, criticados pelos norte-coreanos. Na última terça-feira, em discurso transmitido pela TV, a presidente sul-coreana, Park Geun-Hye, anunciou a criação de um comitê sob sua autoridade que estará encarregado de elaborar "estratégias sistemáticas e construtivas" destinadas a reunificar as Coreias. O tal comitê é integrado por especialistas em diversos temas e tem como missão promover o diálogo intercoreano. Tudo isso ocorre à revelia de um fato: Seul e Pyongyang não assinaram um tratado de paz depois do armistício de 1953. Ou seja, tecnicamente, permanecem em estado beligerante.
Novos conflitos
No discurso pela TV, pronunciado por ocasião do primeiro aniversário de seu mandato, Park disse:
- É necessário preparar a reunificação, que abrirá nova era na Península Coreana.
Uma dificuldade para a unificação coreana vai além da política. É a economia. O PIB sul-coreano é quatro vezes superior ao da Coreia do Norte, o que dificulta a formação de um único país. Os números, porém, muitas vezes são como moedas: têm duas faces. É a economia que faz os norte-coreanos pedirem ajuda e, em troca, prometerem a suspensão do seu programa nuclear.
Mas, bem além da política e da economia, há os sentimentos. Se esse quesito for levado em conta, deve-se pensar nas reuniões familiares cuja carga emocional se vê em cenas comoventes de gente que ficou 60 anos separada dos seus afetos. Os encontros, como os que se viram na semana passada envolvendo mais de 400 pessoas, são ilustrados por imagens de irmãos idosos que choram abraçados. E trazem forte simbolismo, especialmente porque a Coreia do Norte vinha se fechado mais e mais após a posse de Kim Jong-Un em 2011, na dinastia em que ele foi antecedido por seu pai, Kim Jong-Il, e por seu avô, Kim Il-Sung. O jovem Ki, em pouco tempo, realizou disparo experimental de foguete (que os EUA dizem ser míssil), promoveu um teste nuclear e fechou o complexo industrial intercoreano de Kaesong.
Um contraponto a esse arrefecimento na belicidade ideológica não deixa de ser uma exceção que comprova a regra: o Japão, depois de quase 70 anos mantendo uma Constituição pacifista, de orientação defensivista, está na iminência de criar forças armadas regulares para conter a hegemonia chinesa - isso, porém, nada tem de ideológico, mas sim do avanço chinês como potência regional.
O cientista político Igor Fuser concorda que há diminuição de antigas tensões. Pondera, porém:
- De fato, isso ocorre. Por outro lado, os Estados Unidos reavivam tensões da Guerra Fria ao manter a Rússia sob pressão, a isolando e enfraquecendo. Mantêm o infame e anacrônico embargo econômico a Cuba, repudiado por quase todos os governos. Novos conflitos, sobretudo no Oriente Médio, causam morte e destruição. Verificam-se os efeitos nefastos do intervencionismo dos EUA e de seus aliados. A insistência dos EUA em interferir na política de todos os demais países do mundo e de procurar moldá-la de acordo com seus interesses é a maior ameaça à paz mundial na atualidade.
Chipre e Turquia, outra negociação
Outra aproximação que se desenha, em um oriente menos longínquo é do Chipre com a Turquia.
A senha para o arrefecimento das tensões ocorreu em 28 de abril de 2013. O chanceler chipriota, Ioanis Kasoulides, disse, à revista alemã Der Spiegel, que uma reunificação entre os dois países está no horizonte. Nove meses depois, em fevereiro de 2014, portavozes das duas partes começaram o parto. Disseram ter chegado a um acordo para tratar da sua reunificação.
O nascimento desse acordo é essencial para a Turquia conseguir o tão almejado ingresso na União Europeia (UE).
A República do Chipre é uma ilha do Mar Mediterrâneo, ao sul da Turquia, com forte influência grega. Integra a UE desde janeiro de 2008. O terço restante, ao norte, foi ocupado pela Turquia em 1974, tornando-se a República Turca de Chipre do Norte, não reconhecida pelas Nações Unidas.
Também em meio a negociações, está uma questão histórica que não chega a ser propriamente fruto da Guerra Fria, mas que foi atravessada por ela de forma intensa. A origem de Israel e do próprio sionismo é de esquerda, e a União Soviética foi um dos primeiros países a apoiar o Estado judeu.
- A URSS, no final da II Guerra Mundial, tinha grande simpatia pelos sobreviventes do Holocausto, e os fundadores de Israel eram progressistas. Foi um caso raro de URSS e EUA do mesmo lado. Depois, apoiou o Nasser e houve a questão palestina - conta o historiador Paulo Visentini.
O que pode favorecer as atuais tratativas que se desenvolvem entre Israel e palestinos, de acordo com Visentini, é o desvio do interesse americano para outros focos de conflito.
Os diálogos promovido pelo secretário de Estado americano John Kerry é cercado de otimismo contido. Da parte de Israel, o negociador é o conservador Binyamin Netanyahu, o que poderia levar a um acordo mais consistente, com a direita israelense aceitando seus termos e não os boicotando. Assuntos espinhosos têm sido abordados. Na questão controversa dos refugiados, talvez a de mais difícil solução, o palestino Mahmud Abas já se mostrou disposto a negociações mais flexíveis.
Colômbia e Cuba vivem expectativa de mudança
Na América Latina, os acertos pós-Guerra Fria se dão em duas frentes, ambas tendo como pano de fundo o mar azul de Havana. Uma é a própria onda de reformas liberalizantes em Cuba, que põem os EUA e seu embargo econômico ao país caribenho contra a parede. A outra são as negociações de paz entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Curiosamente, as tratativas, que já chegaram a acordos sobre a questão fundiária e a participação dos guerrilheiros na política institucional, desenvolvem-se na capital cubana. O atual ponto, já com acerto esboçado, são os narcóticos.
Vem de um ex-guerrilheiro, o presidente uruguaio José Mujica, talvez o comentário mais contundente a respeito da negociação colombiana:
- Um acordo na Colômbia é o fato político mais importante da América Latina em anos.
Tanto pensa assim, que Mujica, autorizado pelo destaque internacional conseguido com recentes medidas liberalizantes promovidas em seu país, já se colocou à disposição para mediar o acerto e até acenou com a possibilidade de Montevidéu ser a sede de outra negociação: entre o governo colombiano e a segunda guerrilha mais importante do país, o Exército de Libertação Nacional (ELN).
Quanto a Cuba, em 2009, países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) decidiram levantar a suspensão imposta à ilha socialista ainda na Guerra Fria, pavimentando o caminho para que o país de Fidel e Raúl Castro seja reincorporada ao sistema interamericano. Em janeiro, último, pela primeira vez em mais de 50 anos, um secretário-geral da OEA visitou Havana.
Em aparente contraponto, a Rússia, que procura manter hegemonia em ex-satélites soviéticos como a Ucrânia, preocupa-se também com a América Latina: o ministro da Defesa russo, Serguei Shoigu, afirmou na última segunda-feira que o país já tem "negociações avançadas" para a instalação de bases militares em países como Cuba, Venezuela e Nicarágua, além do Vietnã. A declaração foi dada horas depois do início de um exercício militar russo na região de fronteira com a Ucrânia.
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A mãe de todas as reunificações
A mãe das unificações pós-Guerra Fria é a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, após 28 anos de existência da estrutura de 156 quilômetros de extensão e 300 torres militares separando ocidente e oriente da Alemanha. Tão importante foi seu simbolismo, que teve abordagem intensa no cinema. Uma obra com roteiro criativo é Adeus, Lênin, de 2003. O enredo: mulher entra em coma às vésperas da queda do muro e acorda após a vitória capitalista na Alemanha. Seu filho, para evitar que a mãe sofra um baque em razão da mudança, conspira com amigos a fim de criar uma falsa realidade, na qual o país continua dividido.
O muro foi o maior símbolo da divisão do mundo entre bloco ocidental e oriental, e seu fim foi o maior símbolo do fim da Guerra Fria, a configuração posterior ao término da II Guerra Mundial, em 1945, com o planeta separado entre blocos capitalista liderado pelos EUA e socialista liderado pela URSS.