Parado em pé perto de casa nesse vilarejo no topo de um morro em Baaouarta, no Líbano, um corretor imobiliário local citou enraivecido os pontos negativos de morar acima - e a favor do vento - do maior aterro sanitário do país.
O mau cheiro mantém os moradores longe das sacadas e reduz o valor das propriedades, afirmou o corretor, Fayyad Ayyash. Tosse e infecções são comuns, e teme-se o câncer. Moradores têm medo de que o gás metano que se forma no subterrâneo possa pegar fogo, ameaçando comunidades vizinhas com o que chamou de "vulcão de lixo".
- Nós vivemos com medo e o governo não faz nada a respeito - disse Ayyash.
Em janeiro, Ayyash e outros moradores, muitos dos quais integram o mesmo clã do corretor, levaram os temores morro abaixo e bloquearam a estrada que leva ao aterro Naimeh, ao sul de Beirute, paralisando a coleta em boa parte do Líbano e levando à formação de pilhas de lixo nos bairros mais chiques da Capital.
A interrupção repentina de um dos serviços públicos mais confiáveis aumentou o sentimento crescente por aqui de que não existe mais governo.
Washington pode lamentar a paralisia partidária e um "Congresso que não faz nada", mas o Líbano se superou. Desde que o governo renunciou dez meses atrás, o Parlamento raramente se reuniu, nenhuma lei importante foi aprovada e o governo provisório não conta com o respaldo político para estabelecer políticas importantes.
Tudo isso deixou o país sem uma abordagem unificada em relação ao influxo enorme de refugiados fugindo da guerra civil na vizinha Síria, a enxurrada de atentados a bomba que mataram dezenas de civis e os tiroteios entre bairros rivais em Trípoli, cidade no norte.
As divisões profundas que se abriram entre os políticos libaneses, que apoiam lados opostos na Síria, só serviram para complicar ainda mais a situação: tais discórdias envenenaram a atmosfera política e bloquearam o consenso do que o governo libanês precisa para funcionar.
De muitas formas, no entanto, o presente impasse é um exemplo piorado de como o país costuma funcionar.
Lotando uma faixa de terra pouco menor do que Connecticut, os 4,2 milhões de habitantes do Líbano estão divididos em 18 religiões reconhecidas e representados por uma série de partidos políticos, muitos dos quais têm fortes afiliações sectárias. Os líderes partidários agem como chefes políticos das comunidades, distribuindo empregos e proteção enquanto fecham acordos com outros líderes que atendem seus interesses comuns.
O fato de tantas decisões grandes serem tomadas por meio desse processo é o que permite ao Líbano continuar funcionando na ausência de um governo tradicional, disse Rami G. Khouri, diretor do Instituto Issam Fares da Universidade Americana de Beirute.
- A formação de um governo no Líbano é menos importante do que em outras sociedades - disse ele.
As lacunas deixadas pelo governo central contribuem para o dinamismo do Líbano, disse Khouri. A falta de uma polícia pública opressiva livrou o país de um levante ao estilo da Primavera Árabe e o torna um ambiente fértil para empreendedores, pensadores e artistas.
Contudo, o governo também não consegue fornecer serviços confiáveis considerados padrão em outros países, fazendo com que os cidadãos tenham que se virar sozinhos. A água encanada não é potável e as pessoas compram água filtrada. Apagões viraram rotina e os libaneses compram geradores e combustível para manter a luz acesa.
Esse sistema, no entanto, pouco serve para lidar com questões complicadas que exigem uma estratégia nacional, como decidir onde jogar o lixo.
- Para os grandes problemas, é preciso haver um consenso claro dentro de um governo real e é por isso que existe tanta tensão no Líbano hoje em dia. Não existe esse consenso interno, então o país está à deriva - explicou Khouri.
O protesto de janeiro contra o lixo foi um grande exemplo do que pode dar errado quando o governo não consegue lidar com os desafios nacionais.
Para a maioria dos libaneses, os problemas começaram em 17 de janeiro, quando os moradores de vilas ao redor do aterro sanitário Naimeh, em Baaouarta, fecharam a rua de acesso para protestar contra o mais recente prolongamento do contrato de despejo. Em questão de dias, o lixo transbordava das latas não recolhidas e se esparramava por calçadas e ruas.
Os manifestantes afirmavam que o aterro foi criado em 1997 como medida temporária de um plano emergencial. Todavia, ele continuou crescendo enquanto os governos seguintes não conseguiram achar alternativas e, em 2010, o local recebia praticamente o dobro da quantidade de lixo por dia do que no plano original, segundo um relatório das Nações Unidas.
Em 2010, o governo quase resolveu o problema quando um grupo de especialistas desenvolveu um plano para construir incineradores, disse Bassam Farhat, encarregado pela gestão de resíduos sólidos do Conselho para Desenvolvimento e Reconstrução do governo. Porém, antes que a administração pudesse aprovar o plano, o grupo militante Hezbollah e seus aliados se retiraram em janeiro de 2011, forçando o fim daquele governo.
Nenhum governo posterior abordou o tema.
- E nós ainda estamos esperando uma decisão - disse Farhat.
Os manifestantes argumentaram que não tinham quer passar por aquilo por causa da falta de um governo para cuidar do lixo libanês.
- Que eles vejam o lixo nas ruas e venham aqui ver qual é o problema - afirmou Anis Ayyash, mecânico automotivo aposentado presente à manifestação.
No final de janeiro, a polícia deteve um dos principais organizadores do movimento e mandou homens para abrir a rua. Walid Jumblatt, o político mais poderoso na área ao redor do aterro sanitário, prometeu que ele será fechado quando o contrato atual chegar ao fim no ano que vem.
Farhat classificou a reclamação dos moradores como um exemplo clássico de "no meu quintal, não".
Embora reconheça que o aterro tenha ficado maior do que o planejado, sustentando que o local era administrado segundo padrões internacionais e os moradores não teriam provas científicas de sofrerem de doenças em um índice maior do que qualquer outra pessoa no Líbano. Farhat também qualificou o temor de que o aterro possa vir a explodir de "muito distante da realidade".
Praticamente todos os envolvidos concordam que somente um organismo com influência política poderia resolver o problema.
- É preciso ter um governo de verdade com poderes executivos para formular a decisão correta, definir o local correto e empenhar recursos. Um governo provisório não tem como fazer isso - garantiu Karim El-Jisr, diretor libanês da consultoria ambiental Ecodit.
Tal fato pouco consola os moradores próximos, que ameaçaram protestar novamente se o aterro não for fechado.
- Você acorda pela manhã querendo cheirar ar fresco, mas só inala o cheiro do lixo - disse Ribal Ayyash, motorista de caminhão.
Como a maioria de seus vizinhos, ele não acredita que o aterro seja fechado em breve.
- Não existe ninguém no comando do Líbano. Nós estamos vivendo na selva.