As portas estavam trancadas e as luzes, desligadas. Quando Hugo D'Acosta, 55 anos, e 60 de seus vizinhos chegaram à câmara municipal de Ensenada depois de ficarem sabendo que uma votação noturna abriria sua amada região vinícola a empreendimentos imobiliários ao estilo da Flórida e a campos de golfe, eles tiveram de gritar para entrar.
Porém, não adiantou. Em uma sala de reunião no quarto andar, os vereadores rapidamente aprovaram a incorporação imobiliária no coração agrícola do noroeste mexicano, o Vale de Guadalupe, apesar da furiosa oposição de quem passou décadas fazendo dele um destino internacional para o vinho, a comida e a tranquilidade.
- Isso vai destruir tudo. Nós podemos pendurar uvas de plástico para ficar bonito, mas é só isso - , disse D'Acosta, um dos principais vinicultores do vale.
Os vereadores afirmam que as novas regras de zoneamento vão preservar o vale e aumentar o valor das propriedades, disseminando os benefícios da expansão econômica. Porém, as novas normas subvertem o plano regional aprovado pelo Estado que elas deveriam esclarecer ao permitir uma densidade habitacional até dez vezes maior ao mesmo tempo em que enfraquece a supervisão. Cientistas independentes afirmam que o vale árido simplesmente não tem condições de sustentar o desenvolvimento intensificado, criando o que muitos aqui classificam como uma ameaça a um tesouro nacional e um teste vital à jovem democracia mexicana.
O Vale de Guadalupe é a Toscana do México. A grande maioria dos vinhos mexicanos cada vez mais populares vem de vinhedos ao longo de um trecho de terra de 22 quilômetros com os dias quentes e as noites frias cobiçados pelos vinicultores. Nos últimos cinco anos, o interesse pela área cresceu, dezenas de novas vinícolas, em conjunto com pequenos hotéis e restaurantes premiados, surgiram nas montanhas levemente íngremes. Mesmo assim, o lugar continua sendo praticamente o que sempre foi: uma faixa de beleza rústica onde a maioria das estradas é de terra e as noites, iluminadas pelas estrelas.
Para os críticos, as novas regras, válidas para toda a região vinífera ao norte da cidade de Ensenada, poderiam destruir tudo isso. O que poderia acontecer rapidamente. Carlos Lagos, grande empreendedor imobiliário com laços pessoais com as autoridades de Ensenada, anunciou os planos para um empreendimento de 403 hectares, o Rancho Olivares, incluindo um campo de golfe de nove buracos, spa, piscinas e mais de 400 novas casas.
D'Acosta e muitos outros acreditam que estão lutando contra um tipo familiar de corrupção, principalmente com o governo municipal novamente controlado pelo Partido Revolucionário Institucional, que governou (e surrupiou) o México por 71 anos.
Desta vez, porém, uma sagaz coalizão de resistência começou a surgir. Na segunda-feira, pouco mais de uma semana depois que os vinicultores cancelaram o popular festival da colheita em protesto, aproximadamente 300 manifestantes marcharam até a câmara municipal. No dia seguinte, durante reunião pública em uma sala de reuniões em uma universidade lotada em Ensenada, autoridades estaduais, cientistas e urbanistas locais criticaram as novas normas.
- O vale deveria continuar a ser o que é agora, uma área agrícola, para vinho, comida e um lindo cenário - , disse Javier Sandoval, diretor de urbanismo do Instituto Municipal de Investigação e Planejamento, que orienta a prefeitura.
Após comparar as novas regras ao programa regional, ele disse que a votação representava uma ruptura na gestão e procedimentos com a terra. - O conhecimento técnico foi desvinculado das decisões municipais. -
Antigos moradores e recém-chegados preferem o crescimento em menor escala. R.P. McCabe, romancista norte-americano que está construindo uma vinícola em um pedaço de morro diante de onde o Rancho Olivares, disse ter começado a vir aqui anos atrás porque o lugar lhe lembrava do Vale do Napa de sua juventude, um lugar amigável e voltado à família. - Não quero ver algo rural, tradicional e histórico ser levado embora. -
Os vizinhos ao norte, Hector Perez, 40 anos, que está construindo uma vinícola, e ao sul, Natalia Badán, 60 anos, que cresceu em uma fazenda de quase cinco hectares e agora produz vinho e hortifrútis orgânicos, afirmou que o empreendimento de Lagos prejudicaria o vale inteiro. Badán chamou de "agressão" a decisão do novo zoneamento.
- É oportunismo. Eles mudaram as regras de uma forma suja e desagradável para favorecer a especulação imobiliária - , afirmou ela.
O escritório de Lagos não respondeu aos e-mails pedindo comentários.
As regras deveriam ser a etapa final de um processo de 18 anos que envolveu estudos científicos, audiências públicas e um programa publicado para crescimento que priorizava a agricultura e a sustentabilidade. Muitas características do plano eram inovadoras, por exemplo, exigindo que as casas não sejam construídas em linha reta e que uma ampla gama de interessados estaria envolvida em grandes decisões.
Agora, muitos desses grupos, incluindo uma associação favorável às vinícolas, foram excluídos do processo, disse Sandoval. As novas regras também eliminam exigências para estudos de impacto e legalizam tudo que já tenha sido construído e possivelmente qualquer coisa construída até 360 dias depois das regras serem publicadas, criando o que D'Acosta descreveu como uma anistia para construções em que vale tudo.
- É como convidar o Mickey Mouse para o interior - , disse ele, permitindo que o artificial ao estilo da Disney desaloje o autêntico.
O aumento na densidade é a principal preocupação. - O desenvolvimento urbano aqui será fatal para o setor vinífero, completamente fatal - , assegurou Raúl Canino Herrera, especialista em tratamento de água na Universidade Autônoma da Baixa Califórnia.
De acordo com ele, não é só uma questão de fornecimento limitado de água. Nas pequenas cidades daqui onde a maioria dos trabalhadores agrícolas mora, a água somente corre algumas horas por dia, geralmente em um pinga-pinga. Existe também a questão da qualidade. - Tudo que se usa em casa, os detergentes e produtos químicos, termina na água. Como eles vão garantir que a água permanecerá limpa - , indagou ele.
Raymundo de la Mora, vereador que votou a favor das novas regras, disse que elas preservariam a beleza do vale ao estabelecer normas para seu crescimento.
- Até agora, não tínhamos regras que garantissem o crescimento organizado e, principalmente, conservassem o Vale de Guadalupe como parte do legado de todos os mexicanos. Essa é a nossa prioridade. -
Ainda de acordo com o vereador, as regras exigem que a acessibilidade à agua seja levada em consideração, sugerindo que água poderia ser trazida. Ele não negou que algumas autoridades se beneficiariam com a mudança, por meio de propriedades rurais ou conexões com os empreendedores, mas afirmou que os proprietários de terra pobres seriam os principais beneficiários porque as novas normas esclarecem o que pode ser construído. - Nós demos certeza a todo mundo - , garantiu.
Moradores pobres disseram que se o desenvolvimento significar mais empregos, eles estariam a favor. Outros, como Clemente Rodriguez, 58 anos, produtor de grama que a molhava certa manhã, falou que as subdivisões como as planejadas por Lagos provavelmente não seriam tão ruins quanto os críticos temem.
- As pessoas que reclamam nem sequer são daqui. São da França, da Inglaterra ou de onde forem. -
Porém, muitos de seus vizinhos mexicanos afirmaram esperar o pior. O site do Rancho Olivares afirma que ele será justamente o que temem os críticos, - um catalisador de mudanças sem precedentes - . E a exemplo de D'Acosta e Badán, muitos moradores de todas as idades e classes contaram temer que Lagos e outras pessoas com dinheiro e conexões políticas passem por cima de qualquer um cujas necessidades não estiverem de acordo com sua visão de um vale mais povoado e impulsionado pelo setor imobiliário.
- Essa é a realidade. Se você for poderoso e vir aqui e somente houver um copo de água, você vai ficar com ele, e eu terminarei de mãos abanando - desabafou Jose Ramirez, 79 anos, produtor rural aposentado.
Impasse
População acusa vereadores de mudar leis em favor da especulação imobiliária no Vale de Guaradalupe, no México
Região é conhecida como a 'Toscana mexicana' devido a grande produção de vinho
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