Cabul, Afeganistão - Há muito tempo dizem que a poluição do ar na cidade está terrível: pior até mesmo que a neblina tóxica que cobre Pequim.
Durante todo este tempo, muitos estrangeiros envolvidos na invasão do país acreditam que - para ser claro - as fezes fazem parte do problema.
Soldados canadenses já foram avisados sobre o problema em reuniões anteriores a sua vinda, nas quais citavam os relatórios de um teste que encontrou partículas fecais em cerca de 30% das amostras de ar colhidas na cidade. Segundo autoridades, os canadenses ficaram tão preocupados que o governo ordenou uma investigação formal.
- Ouvi esse tipo de história por 40 anos - afirmou Andrew Scanlon, chefe do Programa Ambiental da ONU no país, segundo o qual a história é absurda. "Acho que os diplomatas querem receber acréscimos por insalubridade e por isso afirmam que a concentração de partículas fecais é tão alta." Acrescentando que "a história é muito convincente".
Afinal, a suposta ameaça até tem certa lógica.
Cabul, a capital do Afeganistão, foi construída para 500 mil pessoas, mas sua população chegou a 5 milhões durante os tempos de guerra. Apenas cinco por cento das casas de Cabul são ligadas ao sistema de esgoto, ao passo que o restante dos dejetos é lançado em esgotos a céu aberto. Muitas vezes, os detritos não vão muito longe e não chegam a se juntar a agulhas hipodérmicas e outros tipos de sujeira que flutuam no Rio Cabul. Graças a décadas de seca, todo esse material seca e passa a fazer parte da poeira que toma conta da cidade.
Além disso, a maior parte das casas é aquecida com uma bukhara, a versão afegã dos fornos de combustível múltiplo - e um dos combustíveis mais utilizados são fezes secas de animais, muito mais baratas que a madeira.
Uma autoridade municipal afirmou em 2007 que Cabul "tem os níveis mais altos de matéria fecal na atmosfera em todo o planeta", de acordo com um artigo da Reuters daquele ano.
Por mais plausível que essa afirmação possa parecer, ela não é confirmada por evidências científicas. Ninguém foi capaz de encontrar os estudos citados pelos relatórios, segundo o qual 30% das amostras de ar conteria matéria fecal. Estudos comparativos confirmando o suposto recorde mundial também não foram encontrados.
- Simplesmente não é verdade - afirmou o prefeito de Cabul, Mohammad Yunus Nawandish. - O ar em Cabul não está tão poluído com fezes quanto dizem.
Quando o Programa Ambiental da ONU realizou um estudo que incluiu amostras de ar em 2008, encontrou diversas razões para se preocupar, mas todas elas eram o tipo de problema que se esperaria de uma cidade com trânsito caótico: muito dióxido de enxofre e óxidos nitrosos. Além de uma alta concentração de partículas conhecidas como PM10 - menores que 10 mícrons, o bastante para penetrarem profundamente nos pulmões e um importante indicador da poluição atmosférica -, mas nada que indicasse a presença específica de fezes.
Um estudo feito em 2007 pelo Banco Asiático de Desenvolvimento e pela agência ambiental do governo afegão descobriu que a atmosfera era afetada pelos mesmos problemas de qualquer outra cidade, especialmente em países subdesenvolvidos, onde a qualidade do combustível é muito baixa, mas não havia qualquer menção a fezes voadoras - muito embora os níveis de cádmio fossem muito altos.
Na verdade, quando os canadenses pesquisaram o assunto em resposta à preocupação de seus soldados, os pesquisadores revelaram que as quantidades de matéria fecal no ar eram consideradas normais - até mesmo para os padrões do Canadá. E que boa parte dessas fezes poderia vir simplesmente de pássaros ou de insetos voadores.
Embora Cabul tenha mais esgotos a céu aberto e queime mais estrume, isso não é um problema pelas seguintes razões: a radiação ultravioleta do sol mata a maior parte dos micróbios e até mesmo os que pudessem sobreviver na matéria fecal carregada pelo ar não conseguiriam invadir o corpo humano pelo pulmão; esse tipo de micróbio costuma infectar as vítimas por meio da boca ou da pele.
Os pesquisadores não foram capazes de encontrar os estudos que supostamente haviam encontrado níveis tão altos de matéria fecal na atmosfera.
- Gostaria de destacar que tenho interesse pessoal no assunto - afirmou o coronel canadense que estava entre os desmistificadores, segundo o jornal National Post, do Canadá. - Também estou respirando este ar.
Cabul pode até não ter um problema com fezes no ar, mas está longe de se livrar da poluição atmosférica.
- Todo tipo de poluição é problemático - afirmou o prefeito.
A geografia de Cabul contribui para isso: a cidade fica em um planalto a 1,8 mil metros de altitude e que se parece com o fundo de um pote, cercado de montanhas muito mais altas. O resultado é uma inversão atmosférica durante o inverno que prende os poluentes aéreos.
A poeira é um dos maiores poluentes em lugares secos como Cabul. Não é difícil ver policiais e pedestres se protegendo com máscaras por aqui.
Nawandish não soube comparar a cidade com outras em relação à poluição, mas afirmou que a contagem de PM10 de dois anos atrás era de 250 microgramas por metro cúbico de ar e que este ano o total havia caído para 190 microgramas. - Isso ocorreu porque asfaltamos muitas ruas e plantamos muitas árvores. Essas duas iniciativas diminuíram muito os níveis de poluição - afirmou.
A contagem de PM10 em Pequim, por outro lado, pode chegar a 250 em um dia ruim e a 121 em média; já a média global gira em torno de 71, de acordo com estatísticas da Organização Mundial da Saúde.
Portanto, com uma média de 190, a situação de Cabul é pior do que a da capital chinesa, com base nos níveis de PM10. Contudo, pesquisadores afirmam que há outros poluentes no ar de Pequim que o tornam mais perigoso.
Ainda assim, o problema de Cabul é mortal. O relatório do Banco Asiático de Desenvolvimento calcula que esses níveis de poluição atmosférica - mesmo sem a presença de fezes - pode resultar em 600 mil ataques de asma a cada ano e levar a uma "mortalidade anual excedente" de 2.287 pessoas em Cabul.
Isso significa que a atmosfera de Cabul é mais de duas vezes mais mortal que a guerra; afinal, o número de civis mortos no mesmo ano foi de 1,4 mil - no país inteiro.
The New York Times
Estudos mostram que poluição em Cabul não é tão crítica quanto afirmam autoridades estrangeiras
Falta de evidências científicas contesta afirmações sobre o excesso de partículas fecais no ar da capital afegã
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