Entre abril e maio do ano passado, a maior tragédia climática registrada na história do Rio Grande do Sul esfacelou rodovias e arrastou pontes rio abaixo, o que comprometeu a circulação de milhares de gaúchos ao impor bloqueios viários totais e parciais principalmente nas regiões Centro, Serra e dos Vales. Cerca de um ano depois da catástrofe, os estragos na infraestrutura ainda comprometem o trânsito entre localidades, exigem o uso de desvios por estradas de chão precárias e dificultam o acesso a centros urbanos e a serviços básicos como unidades de saúde.
Cinco famílias que vivem em uma faixa de 130 quilômetros em diferentes municípios da região central e arredores ilustram as agruras experimentadas por comunidades onde as ligações viárias foram fraturadas pela violência da enxurrada. Elaine Vidal, por exemplo, precisa enfrentar cinco quilômetros de estrada de chão em uma zona alagadiça para buscar atendimento de saúde para o neto. Alexandra Alves necessita viajar a outra cidade para chegar ao centro de seu próprio município. Enildo Rückert depende de uma corda para enviar produtos agrícolas de uma margem a outra do riacho que engoliu uma antiga ponte de madeira, entre outros desafios cotidianos que se prolongam desde a grande enchente de 2024.
Dificuldade para conseguir atendimento a menino com paralisia cerebral
A casa da produtora rural Elaine Terezinha Vidal, 53 anos, fica a 350 metros do trecho da rodovia RS-348 que conecta o município de Dona Francisca, onde mora, a Agudo, onde costuma fazer compras e buscar remédios e atendimento especializado para o neto, Gabriel, oito anos, que tem paralisia cerebral. Em condições normais, bastariam alguns minutos para percorrer os 11 quilômetros de asfalto que interligavam as duas cidades. Desde a enchente, pedaços inteiros da estrada foram arrancados pela água revolta do Rio Jacuí transbordado — nos primeiros dias de maio, foram contabilizados 112 bloqueios totais e 24 parciais em vias sob responsabilidade do Estado. Outros 191 trechos federais foram afetados — entre os quais 70% envolviam quedas de barreiras, rompimentos de pista ou interdição de pontes.

O aguaceiro não arrastou apenas a camada de asfalto, que se erguia sobre uma imensa área de várzea própria para o cultivo de arroz. Desmanchou toda a estrutura viária, incluindo o leito elevado da pista, por vezes poupando alguns metros que restaram como pequenos planaltos de terra encimados por pavimento asfáltico que ligam nada a coisa alguma. Até o final de março, não se viam trabalhos significativos de recuperação no local. A Secretaria Estadual de Logística e Transportes sustenta que o trecho faz parte do conjunto de 15 lotes de obras em estradas e seis pontes já contratado pelo Piratini a um custo de R$ 1,2 bilhão. A previsão de término da recuperação da RS-348 é de 12 meses.
Quando necessita de auxílio para Gabriel, ou precisa fazer compras em mercados melhor abastecidos, a família tem que passar ao largo do trecho de aproximadamente 3,5 quilômetros bloqueados e encarar um desvio de cinco quilômetros em estrada de chão. Como Gabriel não consegue firmar bem o pescoço, o sacolejo do veículo sobre o piso irregular representa um desafio a mais. A solução é ir devagar, e torcer para o céu se manter sem nuvens.
— Quando chove, dá um barral danado — lamenta a mãe de Gabriel, Anelize Migotto, 27 anos.
Dado que o desvio é uma estradinha que avança sobre a várzea, uma área naturalmente úmida, qualquer precipitação exige a mobilização de máquinas da prefeitura para recuperar emergencialmente o traçado.
Sem a estrada, tudo fica mais difícil: conseguir atendimento para o Gabriel, buscar alguns remédios. Nem tudo tem em Dona Francisca. Íamos à cidade três, quatro vezes por semana. Agora, com essas dificuldades, vamos uma ou duas.
ELAINE TEREZINHA VIDAL

A família chegou a interromper as sessões de fisioterapia, terapia ocupacional e fonoaudiologia de Gabriel temporariamente, mas planejava retomar os atendimentos em breve apesar das dificuldades de deslocamento. A mãe do menino, Anelize, estava se preparando para assumir um emprego em uma fábrica de calçados em Agudo. Todos os dias, por tempo indeterminado, teria de enfrentar o pedaço de estrada poeirenta para chegar ao serviço.
Após cruzar ponte de maca para dar à luz, mulher mudou de cidade
A dificuldade para sair de sua cidade em direção a centros urbanos maiores, após a catástrofe de maio do ano passado, fez a dona de casa Alice Ribas Soares, 38 anos, tomar uma decisão radical: deixou o município de Dilermando de Aguiar, onde uma ponte foi interditada após um dos seus pilares ser destruído pelo turbilhão. Hoje, vive em Santa Maria principalmente em razão da facilidade de acesso a serviços de saúde.

Em sua nova casa, localizada na quadra 11 do loteamento Cipriano da Rocha, recorda dos momentos de tensão pelos quais passou quando o Estado ainda se encontrava mergulhado no caos. No fatídico mês de maio, grávida de sete meses e três semanas, ficou assustada quando começou a sentir as contrações do parto. Em condições normais, bastariam sete minutos de carro para cruzar os nove quilômetros de distância que separam o município de Dilermando de São Pedro do Sul pela ERS-530, e de onde bastaria seguir por mais 30 quilômetros pelo asfalto da RS-287 até Santa Maria.
A interdição da ponte para veículos, porém, exigiria um desvio de mais de 30 quilômetros percorridos em sua maior parte por estrada de chão.
Não tinha nada combinado. A bolsa estourou e eu corri para o posto de saúde de Dilermando. Como era uma gravidez de gêmeos, de risco, eu tinha de chegar a Santa Maria.
ALICE RIBAS SOARES
A necessidade de chegar o quanto antes a um hospital fez as administrações de Dilermando e de São Pedro do Sul armarem um plano de emergência: a gestante foi levada por um veículo do município até o início da ponte bloqueada. Pelo lado oposto, uma ambulância do Samu a aguardava já com o motor ligado. Ela foi colocada em uma maca e transportada dessa forma ao longo dos cerca de 50 metros da passagem sobre o Rio Ibicuí-mirim. Do outro lado, foi instalada na ambulância para seguir viagem.
—Eu fiquei com muito medo, mas conseguimos chegar — relembra a dona de casa.
Do casal de gêmeos, porém, apenas a menina Luna Soares Sobreira, que vai completar um ano junto com a tragédia climática, conseguiu sobreviver. Segundo a família foi informada no hospital, a morte do menino não teria sido influenciada pelas condições de deslocamento. Depois do parto, a mãe teve alta, mas a bebê precisou permanecer na UTI. Todos os dias, ao longo de um mês, Alice acordava antes das 5h para percorrer o caminho até o Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) e amamentar a filha.
Como demorava muito para chegar lá, eu tinha de sair ainda de madrugada.

No final de março, por meio de uma parceria do Departamento Estadual de Estradas de Rodagem (Daer) com os municípios, foi liberada uma ponte provisória ao lado da passagem ainda interditada para veículos. Graças a essa iniciativa, ainda que temporária, foi possível retomar o tráfego ao longo da ERS-530. Em razão disso, a família agora delibera se permanece em Santa Maria ou retorna para Dilermando de Aguiar. O medo de um novo percalço ainda assombra a dona de casa.
— Passa um filme na cabeça da gente de tudo o que aconteceu — conta Alice.
Corda para atravessar mercadorias sobre riacho

A força da água destruiu centenas de pontes responsáveis por facilitar o trânsito entre diferentes localidades de uma mesma cidade. Um levantamento feito pela Federação das Associações Municipais de Municípios (Famurs) indica que 1,3 mil dessas estruturas foram danificadas durante a inundação. A entidade não dispõe de um mapeamento atualizado do que já foi consertado e do que segue pendente, mas há relatos de muitos lugares onde ainda há dezenas de estruturas comprometidas total ou parcialmente.
A zona rural de Cachoeira do Sul é um desses rincões entrecortados pelo sumiço de antigas pontes de madeira arrastadas por córregos e riachos que se agigantaram durante o período de chuvarada e botaram abaixo o que havia pela frente. Além de dificultar a circulação dos moradores e o acesso à saúde e educação, a falta de passagem sobre cursos d'água dificulta o transporte da produção agrícola que caracteriza a principal fonte de sustento das populações rurais.
A localidade de Bosque é uma das mais afetadas pela queda dessas estruturas. A família do agricultor Enildo Rückert, 59 anos, vive nas proximidades de uma sanga que desde maio do ano passado se tornou um obstáculo à passagem de veículos. O pontilhão de madeira foi destruído e, embora o curso d'água seja raso, fica pelo menos dois metros abaixo do nível da estrada de chão. Como o desvio para seguir em direção à sede do município exigiria uma viagem de mais de 10 quilômetros sobre chão batido, Enildo e o tio, o também produtor rural Danilo Rückert, 68 anos, criaram um mecanismo para passar produtos entre as duas extremidades apartadas da via. No final da manhã do dia 26 de março, os dois colocaram a estratégia em prática: o sobrinho, que mora de um lado da ponte partida, ligou para o tio, que vive na margem oposta, para combinar o envio de nove dúzias de ovos.
Enildo tira do carro uma longa corda amarelada amarrada a um amortecedor, que lança ao longo dos 10 metros de vão até pousar próximo dos pés do parente. Essa corda é presa a uma argola que desliza ao longo de um cabo metálico que liga as duas cabeceiras desmoronadas. Um cesto de vime também é amarrado à corda. O tio enche o cesto com caixas de ovos, e o sobrinho puxa o recipiente para si.
Se não for desse jeito, precisa dar uma volta muito grande. Pegamos produtos para nosso consumo próprio, mas também para revender na feira livre que ocorre duas vezes por semana em Cachoeira.
ENILDO RÜCKERT
A prefeitura de Cachoeira do Sul informa que, de cinco pontes destruídas no município ainda à espera de reconstrução, quatro estavam em licitação no começo de abril, com recursos federais, e uma em fase de projeto.
Aumento do custo de vida
A agricultora Alexandra José Alves, 43 anos, há cerca de um ano enfrenta uma situação peculiar na região central do Rio Grande do Sul. Moradora da localidade de Santos Anjos, no interior de Faxinal do Soturno, precisa viajar até outra cidade para conseguir chegar ao centro do próprio município — onde vive a maior parte dos 6,7 mil habitantes e se concentram atividades como comércio e serviços. Visto que não dispõe de automóvel, antigamente percorria de bicicleta os três quilômetros entre a bucólica Santos Anjos e a sede municipal. Desde a enchente, com a queda da ponte sobre o Rio Soturno, ela precisa percorrer cerca de 10 quilômetros de asfalto, passando pela cidade vizinha de São João do Polêsine, para chegar ao mesmo ponto — mais de três vezes além do trajeto anterior.

Uma das consequências da demora em recuperar o percurso original, que se encontra em obras, é um aumento no custo para se deslocar entre sua casa e o centro urbano.
Muitas vezes, não dá pra fazer todo esse caminho de bicicleta, principalmente quando o tempo está ruim. Então acabo tendo de pagar R$ 70 de táxi para ir e voltar. A gente é colono, acaba ficando muito caro.
O aumento no custo de vida provocado pelas restrições de mobilidade também afetou o supervisor de vendas Douglas Lavratti, 54 anos, que mora em Dilermando de Aguiar. O desvio de mais de 30 quilômetros, que durante quase um ano foi a única opção de deslocamento até a vizinha São Pedro do Sul, provocou um aumento no preço de vários produtos vendidos em Dilermando por conta das dificuldades de transporte.
O botijão de gás, que custava R$ 98, chegou a R$ 145.
DOUGLAS LAVRATTI

As viagens diárias do filho de 19 anos até a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde cursa Educação Física, também passaram a pesar no orçamento familiar durante os cerca de 10 meses em que a passagem sobre o rio permaneceu impossibilitada. Eles se viam obrigados a pagar R$ 50, todos os dias, para o jovem usar um serviço de carona de moto para se deslocar até um ponto onde podia pegar um ônibus.
Em 24 anos que vivemos aqui, foi a primeira vez em que ficamos tão isolados assim.
Com a recente instalação de uma ponte provisória, a família espera se recuperar dos prejuízos sofridos ao longo dos últimos meses.
O que dizem os governos estadual e federal
O secretário de Logística e Transportes do Estado, Juvir Costella, afirma que o ritmo de reconstrução viária no Rio Grande do Sul enfrenta desafios, como a complexidade de refazer por inteiro trechos devastados, mas está além do que era previsto logo depois da catástrofe:
— Em abril do ano passado, o comentário é de que levaríamos quatro, cinco anos, talvez uma década, para que o Estado pudesse se recompor ou voltasse a ser competitivo. Na minha avaliação, eu diria que, nesse prazo de 12 meses (desde a enchente), já dá para perceber que o Estado está, não vou dizer reconstruído, mas em um processo bastante avançado de reconstrução.
Costella sublinha que o governo investiu R$ 432 milhões em ações emergenciais e, posteriormente, contratou serviços de reconstrução em 15 lotes rodoviários, já com ordem de início de obra, e está em processo de recuperação ou construção de 10 pontes - das quais, até meados de abril, oito estavam com contrato assinado e duas em fase final de formalização. Já haviam sido aprovados R$ 1,7 bilhão em recursos para esses trabalhos. Havia sete pontos com bloqueio total em vias estaduais, e seis com interrupção parcial.
O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) informou, por meio de nota, que "todas as rodovias federais atingidas pelos eventos climáticos de maio/2024 foram atendidas por serviços de restabelecimento de tráfego, em diferentes magnitudes. Os serviços mais complexos e de maior proporção tiveram de ser atendidos por contratos específicos, o que acarretou um maior tempo de resposta efetiva".
O órgão federal acrescenta que uma primeira etapa de restabelecimento de tráfego foi concluída a um custo de R$ 107,7 milhões, e foram assinados 20 contratos para "obras estruturantes de reconstrução" orçadas em R$ 1,2 bilhão. Até janeiro deste ano, haviam sido realizados serviços equivalentes a R$ 75,5 milhões. Até meados de abril, havia quatro pontos com bloqueio parcial em vias federais, e nenhum totalmente interrompido por conta da cheia do ano passado.