Há um ano, quando as águas se evadiram com fúria do leito do Rio Taquari pela terceira vez em um intervalo de oito meses, a pior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul estava em plena marcha.
A imensa maioria dos municípios no percurso de 140 quilômetros do rio — de norte a sul, entre São Valentim do Sul e Triunfo, já na Região Metropolitana — sofreu danos na enchente de maio de 2024.
Em Muçum, um cemitério veio abaixo e corpos foram carregados pela correnteza, para desespero da zeladora do local; em Roca Sales, um deslizamento ceifou a vida de seis familiares de um servente de pedreiro; enquanto em Cruzeiro do Sul um padre ficou sem igreja.
Um ano depois, estas três testemunhas oculares revisitam as lembranças e ainda sentem um aperto no peito ao retornar para onde antes havia algo ou alguém amado. Em comum, todos anseiam por tempos mais alvissareiros.
Esta reportagem integra uma série de de Zero Hora e da Rádio Gaúcha para marcar um ano da enchente histórica de maio de 2024.
A zeladora de um cemitério destruído

A água do Rio Taquari elevou-se com velocidade em Muçum — cidade de 4,6 mil habitantes — e não poupou nem o descanso eterno dos mortos, devastando o cemitério da cidade, onde Ivete Salton Pegorer, 53 anos, ganha o pão de cada dia há mais de 15 anos como dedicada zeladora.
— Ficou tudo completamente destruído. Foi muito desesperador porque a água vinha rápido. Era gente pedindo socorro e coisas que desciam e batiam (nos jazigos e sepulturas) — recorda a zeladora, mencionando que o local já havia sido duramente atingido pela inundação em setembro de 2023.
O cenário no cemitério, situado à margem do rio, ainda impressiona pelo tamanho do estrago. A água foi impiedosa e derrubou pesadas paredes como se fossem de papelão.
Para Ivete, a visão do caos deixou sentimentos com os quais é difícil lidar. Ela ainda embarga a voz e fica com os olhos marejados ao falar daqueles momentos:
— Me deu uma tristeza. Ver tudo indo embora e túmulos abertos. Nunca imaginei que iria acontecer uma coisa dessas.

Natural do interior de Encantado, Ivete mudou-se para Muçum aos sete anos. Desde 2009, trabalha como zeladora do cemitério. Chegou a morar a poucos metros do local de labuta diária, mas agora vive em uma região mais alta e distante do rio.
Ela caminha entre o que restou das capelas e sepulturas e, enquanto ajeita as flores deixadas sobre os túmulos que não foram levados pela enchente, seus olhos transmitem profunda tristeza. Um ano depois, ela fala em tom de incredulidade:
Parece que é uma coisa que não aconteceu de verdade. Eu rezo e peço a Deus todos os dias que a cidade se levante. Que volte a ser como era antes e seja melhor do que agora
IVETE SALTON PEGORER
Zeladora do cemitério em Muçum
Apaixonada e orgulhosa do trabalho no cemitério, a zeladora comenta que, após a inundação de maio de 2024, chegou a pensar em retornar a Encantado. Mas o marido Renato Pegorer, 55, não deseja ir para outra cidade. O casal tem um filho, Eduardo, 20. O amor pelo trabalho também a faz permanecer.
— Para mim é muito triste. O serviço que eu faço é com muita dedicação — assegura, com a esperança de que possa continuar a atividade em novo cemitério a ser construído em outra parte de Muçum.
A perda de pais, irmãs e avós

Na parte elevada da Linha Marechal Hermes, na zona rural de Roca Sales, vivia a família do servente de pedreiro Eduardo Brino, 25. Na tarde de 30 de abril de 2024, uma faixa do morro veio abaixo na cidade de 10,4 mil habitantes. Toneladas de terra e pedras desceram com velocidade, vitimando as irmãs Gabriela, então com nove anos, e Maria Eduarda, 20; e os pais Janice, 49, e Dorly, 57. Os avós Elirio e Érica, ambos de 78 anos, seguem desaparecidos.
A propriedade da família, onde havia plantação de milho e criação de 450 porcos, vacas de leite e outros animais, como galinhas e cães, foi soterrada. Sobreviveram apenas uma terneira e uma cadela, esta com fraturas graves.
— Nunca teve nada antes (de deslizamento), nem foi visto nenhuma rachadura — conta Brino.
De acordo com ele, os bombeiros registraram nos arredores da propriedade ao menos 22 deslizamentos de terra no período da enchente, e houve outras vítimas. Quem olha para os morros da Linha Marechal Hermes percebe, mesmo após um ano, salientes falhas de terra entre a vegetação. Verdadeiras cicatrizes da tragédia.
O servente de pedreiro havia começado a construir uma casa no terreno de 12 hectares pertencente aos familiares. Chegou a levar os blocos prontos para a construção da futura moradia na propriedade. Na data do deslizamento, estava em Muçum, onde mora há quatro anos com a esposa, a auxiliar de escritório Luana Dutra, 24.

— Mesmo que eles (familiares) não estejam mais aqui hoje, não tem o porquê de vender. Isso aqui é herança de família — reflete, sobre os conselhos recebidos de amigos para dar destino ao local.
Na tarde seguinte ao seu último encontro com os familiares, aconteceu o deslizamento. Ele ficou sabendo pelos vizinhos do outro lado do rio. Os bombeiros chegaram ao local na noite do fato. Tudo estava coberto por terra. O acesso era difícil. Encontrar os corpos foi uma tarefa árdua e que se estendeu por meses.
Praticamente um ano após a perda dos parentes, ele voltou ao topo do morro. De lá se observa o caminho do deslizamento. Ali, embaixo de tanta terra, ele perdeu para sempre seis familiares. Sua narrativa é pontuada por breves silêncios e uma expressão de resignação.
É Deus que está mandando. Se ele quis assim, vai ser assim. Ninguém sabe o dia de amanhã. Um dia estava todo mundo junto, e no outro, não mais.
EDUARDO BRINO
Servente de pedreiro
Apesar da tragédia, não passa pela cabeça de Brino abandonar as terras. A propriedade pertencia aos seus familiares havia mais de sete décadas. Era do trabalho pesado na roça e no chiqueiro de porcos que vinha o sustento dos pais e dos avós. Questionado se acredita nas mudanças climáticas, ele faz nova alusão a Deus:
— O mundo está virando. O patrão velho lá em cima está cansado de algumas coisas, e nós, aqui na terra, vamos ter que aguentar. Vai acontecer muita coisa ainda nesse mundo.
O padre sem igreja

Restaram apenas ruínas da Igreja Nossa Senhora de Fátima, no bairro Passo de Estrela, em Cruzeiro do Sul, após a enchente de 2024. Além do templo, 600 residências foram destruídas na localidade. Testemunhas dizem que os gritos por socorro dos moradores, ilhados nos telhados das casas, podiam ser ouvidos da outra margem do Rio Taquari. Algumas moradias boiavam em meio à enxurrada.
A imagem da santa existente na igreja — que perdeu as mãos e o nariz ao cair do topo da capela — foi resgatada por devotos. A escultura de três metros de altura foi conduzida para outro ponto do bairro. Com a força da inundação, o sino, de bronze, foi encontrado na cidade vizinha de Estrela. A enchente foi uma provação para Cruzeiro do Sul, município de 11,6 mil habitantes.
De aparelho nos dentes e batina preta, o padre Ezequiel Perin, 32, rezava missas na igreja. Sempre que retorna ao local da destruição, entrelaça as mãos, baixa a cabeça e se afasta de quem está por perto para rezar em silêncio.

— Quando nós olhamos para o cenário da enchente de maio, eu não pensava que as coisas podiam se recuperar tão rápido. Aqui a gente vê a força das pessoas, a vontade de reconstruir e como o ser humano consegue se adaptar de forma tão rápida — atesta o padre, natural de Canudos do Vale.
— O fato é que a luz continua brilhando. E isso é muito bom — acrescenta.
Observando as agora tranquilas águas do Rio Taquari, Perin emociona-se. As lembranças da igreja desabando retornam à mente.
— Quando eu vi o vídeo da igreja caindo não parecia ser de verdade... Aquela hora da tragédia e do desespero completo. E ao mesmo tempo eu pensava "se foi a igreja, então o número de mortos vai ser muito alto". Porque em todas as enchentes a igreja era um abrigo, pois a água não chegava. Pensei que era o fim de Passo de Estrela — pensou ele, que vive há três anos na cidade.
Conforme o padre, os devotos o procuram dizendo que querem virar a página da enchente, superar a tristeza que sentem ao recordar da experiência:
Uma das coisas que eles (devotos) dizem é: 'Padre, nós precisamos fazer as pazes com o rio. E o rio fazer as pazes conosco. Porque nós não podemos ficar magoados com o nosso rio, que é um símbolo de vida.'
PADRE EZEQUIEL PERIN
Cruzeiro do Sul
Por fim, ele deixa uma mensagem:
— O Rio Grande do Sul foi extremamente afetado, mas ao mesmo tempo conseguiu dar um testemunho de firmeza, de esperança e de continuidade. Não é uma enchente que vai acabar com o Rio Grande do Sul e com a nossa esperança.
O rio
A inundação na região acompanhou a Bacia Taquari-Antas, que abrange uma área de 26,5 mil quilômetros quadrados, dividida em 119 municípios do RS. No extremo leste do Planalto dos Campos Gerais nasce o Rio das Antas. Ele percorre 390 quilômetros e segue até a confluência com o Rio Carreiro, em São Valentim do Sul. Na sequência, denomina-se Rio Taquari e corre até desembocar no Rio Jacuí, em Triunfo.
— O Rio Taquari é conhecido por subir o nível das águas muito alto. No Brasil, ele é possivelmente o primeiro colocado, para um rio do tamanho dele, em termos de velocidade de subida e o número de metros que ele sobe — explica o professor Fernando Fan, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Conforme o docente, a região tem solos muito rasos. Então, quando ocorre uma chuva, o chão não tem capacidade de absorver essa água, fica saturado e ela escoa. Além disso, o curso do rio possui muita declividade, o que acarreta na rapidez de escoamento da água.
— Se a gente traçar um perfil na perpendicular atravessando esse rio, ele fica bastante aprofundado dentro desse perfil. Ou seja, quando começa a receber água de seus afluentes, sobe rapidamente dentro deste encaixe no vale em que está — ilustra.
Na enchente de maio de 2024, um movimento chamou a atenção, algo que até pesquisadores da área da hidrologia dizem ter observado então pela primeira vez. Sobre a cidade de Roca Sales, em vez de acompanhar o leito, o rio passou em linha reta.
— A cidade fica dentro da curva do rio. Nesse evento de 2024, o nível subiu tanto que as águas andaram sobre as planícies. O nível foi tão grande que a água foi capaz de desenvolver velocidades nessa planície de inundação. E em velocidade ela tem poder destrutivo maior. Em Roca Sales, o rio pegou um atalho e conseguiu escoar sobre a cidade — detalha Fan.

Segundo medições do IPH na época, em Muçum, os dados registraram que o nível da água aumentou de 3m46cm, às 16h do dia 29 de abril, para 25m57cm, às 7h30min do dia 2 de maio, o que evidencia um aumento de mais de 21 metros em 62 horas.
Reconstrução das cidades
Muçum
Em Muçum, a ponte Brochado da Rocha, que liga o município a Roca Sales e à serra gaúcha, foi reconstruída. A obra custou R$ 10 milhões.
Muitos moradores não voltaram para as casas às margens do Taquari. Pela cidade, cartazes pedem o desassoreamento urgente do rio.
Segundo a prefeitura, todas as famílias que tiveram casas destruídas ou condenadas receberão novas moradias, assim como aquelas que residiam em áreas consideradas de risco extremo.
Até 16 de abril, a cidade tinha 13 casas entregues por meio de doações da iniciativa privada em áreas desapropriadas pelo município. A prefeitura ajudou com rede de água e estação de tratamento de esgoto. O governo do Estado apoiou com a terraplenagem necessária e parte da pavimentação. Em maio, há previsão de mais 42 moradias serem entregues pela iniciativa privada no Loteamento Jardim Cidade Alta 2.
Outros dois loteamentos estão sendo preparados. Os três ficam em áreas fora da zona de inundação. No Renascer, no bairro Batalhão, 80 casas serão entregues por meio do programa A Casa é Sua, do governo do Estado, que também construirá um ginásio de esportes projetado para servir como abrigo em situações de emergência. Atualmente, a área recebe infraestrutura. A previsão de término é para o fim de 2025.
O município ainda receberá 177 unidades habitacionais da Defesa Civil nacional. Algumas residências serão construídas no Loteamento Jardim Cidade Alta 3, onde já está em andamento a terraplenagem.
— Fizemos a desapropriação e estamos em fase de adequação dos terrenos para conseguir evoluir na construção das casas — afirma o prefeito Mateus Trojan sobre este trabalho.
Muçum foi contemplada com 36 casas pelo programa Minha Casa, Minha Vida Rural - Calamidade, com previsão de conclusão das primeiras 17 unidades em seis meses.
Nove empresários assinaram, no dia 20 de março, contratos para recebimento de terrenos no Loteamento Bela Vista, área segura e fora da zona de alagamento, desapropriada e doada pela prefeitura. Uma moradora doou um terreno na Linha São Luís, para construção de um novo cemitério. O projeto está sendo feito pela prefeitura, que já possui licenciamento ambiental, e a preparação do terreno deve iniciar nas próximas semanas.
Roca Sales
Muitas moradias de Roca Sales foram abandonadas ou têm placas de aluga-se na fachada. A Rua 31 de Março ainda apresenta vestígios da destruição de setembro de 2023 — ampliada com a cheia de 2024 —, assim como as demais vias das imediações. A Avenida General Daltro Filho, principal acesso de entrada na cidade, ainda carece de reformas. No entorno ficam empresas importantes para a economia do município, como a JBS e o Curtume CBR.
O prefeito Jones Wunsch, o Mazinho, afirma que o maior problema é a habitação. Conforme a prefeitura, há um déficit de cerca de 534 moradias.
— É o calcanhar de Aquiles, digamos assim, e está me tirando o sono. A gente depende do Estado e da União. Estamos fazendo pressão, mas nada está saindo do papel — reclama.
O governo do Estado afirma que desapropriou um terreno no município, onde construirá 60 casas, além de repassar recursos à prefeitura para a preparação da área.
O chefe da Secretaria para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, Maneco Hassen, diz que o governo federal contratou a construção de cem moradias no município, além de terem sido assinados contratos para a compra de 11 imóveis pelo programa Compra Assistida.
No centro da cidade, a prefeitura fez trabalhos de limpeza, pavimentação e recuperação de calçadas. O Hospital Roque Gonzales, que foi inundado, deverá abrir 38 leitos adicionais.
A Região Alta foi um dos focos da atual administração. Foram mais de dois meses de ações concentradas nessa localidade.
— Arrumamos a estrada de Santa Tereza até Muçum. Fizemos uma estrada modelo — diz o prefeito.
Cruzeiro do Sul
O bairro Passo de Estrela, no município de Cruzeiro do Sul, permanece destruído. Neste momento, máquinas limpam a área onde antes era o bairro, que abrigará um Parque Linear Memorial. Com investimentos que somam R$ 122,8 milhões do governo estadual, o Novo Passo de Estrela será reconstruído em outra área, com 200 casas.
O coordenador da Defesa Civil de Cruzeiro do Sul, Rodrigo Marques Borges, comenta que o principal problema, assim como em Muçum e Roca Sales, é a habitação. A prefeitura afirma que o município necessitaria de mais de mil casas.
— O principal gargalo são as casas definitivas. Até um mês atrás, ainda estávamos com abrigos provisórios. Na metade do mês passado, tivemos a entrega de mais 28 módulos habitacionais, o que possibilitou que nós zerássemos o abrigo do município.
Durante a visita do governador Eduardo Leite, no dia 22, foi anunciada a contratação de 97 casas no bairro São Gabriel. Também foi anunciada a liberação de convênio para abertura da via principal que ligará o Novo Passo de Estrela ao terreno onde ficará o parque memorial.
Um loteamento, em etapa final de preparação, no bairro Rosa, receberá 26 casas. O investimento de R$ 4,7 milhões com recursos do Fundo do Plano Rio Grande (Funrigs) será repassado ao município por meio de convênio.
Conforme a prefeitura de Cruzeiro do Sul, houve 65 assinaturas de contratos para repasse de casas pelo programa Compra Assistida, do governo federal. Em torno de 30% das chaves foram entregues para os moradores até agora.
— Cruzeiro do Sul é a que tem mais entrega (entre as três citadas na reportagem). Tem várias famílias pelo Compra Assistida. E nós autorizamos a construção de 500 moradias na semana passada (de 13 a 19 de abril) — assegura o chefe da Secretaria para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, Maneco Hassen.
O morro localizado no centro da cidade foi impactado pela enchente de 2024, gerando risco de deslizamento. Um projeto de drenagem foi elaborado. Foi encaminhado outro projeto, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, de contenção de 15 quilômetros da encosta do rio, que deverá beneficiar partes de quatro bairros e da zona rural.
— Em termos de reconstrução são esses projetos que encaminhamos. Pudemos dar uma melhorada e desobstruir algumas vias urbanas e rurais, que ainda estavam obstruídas por entulhos da enchente — completa o coordenador da Defesa Civil municipal.
Segundo dados do governo estadual, 478 municípios foram impactados pela enchente de maio de 2024, 184 pessoas morreram e 25 seguem desaparecidas no território gaúcho.