
CORREÇÃO: Marciano Corrêa da Silva é presidente do bairro Cânyon, e não do bairro Vila Ipê. A informação incorreta permaneceu publicada entre 19h de 17/08/2022 e 15h05min de 19/08/2022.
O que é e o que faz de alguém um líder comunitário? Foi em torno desta pergunta que um encontro descontraído numa tarde de sexta-feira, no espaço cultural Vielas, no bairro Euzébio Beltrão de Queiroz, reuniu quatro pessoas de destacada atuação junto às populações de seus bairros, em Caxias do Sul. Mediado pelo rapper e educador social Chiquinho Divilas e pelo idealizador do Vielas, Fernando Morais, o descontraído café da tarde foi regado a boas histórias de vida, lembranças de carnavais e sobre como era a vida nas periferias em décadas passadas. A reportagem aproveitou a ocasião para colher um breve relato biográfico de cada um dos convidados. Confira a seguir:
"Gosto de desenrolar as coisas"
Carla Patrícia Borges da Fonseca, a Dona Carlinha, 51 anos, líder comunitária do bairro São Vicente
"Nasci no bairro São Vicente, onde moro até hoje. A família veio de Bom Jesus. Minha infância foi boa: estudar, se envolver com Carnaval, coisa que minha família sempre gostou. Adorava cantar no coral da irmã Flora, que infelizmente terminou quando ela foi embora para o Tocantins. Faz muita falta. A gente viajava para Porto Alegre, até pra São Paulo para cantar.
Meu envolvimento se dá mais pelo lado da escola de samba, Associação Cultural e Esportiva São Vicente. Tomei gosto desde pequena. Meu pai era passista. Quando tinha seis anos, ele disse que eu ia desfilar como parceira dele, e assim foi. Desfilei em praticamente todas as escolas de samba tradicionais de Caxias, pelo menos as da minha época.
Hoje sou da associação (de moradores). Faz 14 anos. Sou muito da metida. Gosto de desenrolar as coisas, de dizer que gente vai fazer agora, não depois. Porque sei que é assim que vai funcionar. Me relaciono com a comunidade não só no Carnaval. Sou muito humana, gosto de todos e não tenho nenhuma vergonha de morar no São Vicente. Tenho orgulho.
Não tenho do que reclamar. A comunidade é muito unida. No Carnaval é bonito de ver, porque se tu chega no bairro 15 dias antes, não diz que vai sair desfile. Mas quando chega na hora é todo mundo dando a mão e se dedicando de coração para colocar a escola na avenida. Nunca fomos campeões, mas já fomos vice. É muito gratificante estar na avenida e ver a escola montada pra desfilar. Eu me enxergo em cada menina nova com sua fantasia, e todo ano eu choro. E quando a gente encerra o desfile na Catedral eu agradeço a Deus por ter dado tudo certo".
"É uma união inacreditável"
Valdir Vieira da Silva, o Valdir Negrão, 58 anos, líder comunitário do bairro Belo Horizonte

"Nasci em Caxias do Sul, no bairro Planalto. Morei no Fátima, no Pioneiro, onde cresci, e com 16 anos fui para o bairro Belo Horizonte, na Zona Norte. Fui um dos primeiros moradores do bairro. Não tinha rede de luz, água tinha que pegar no poço. Estava recém-casado, e a primeira morte que houve no bairro foi da minha esposa, vítima de um derrame cerebral.
Sou presidente do Belo Horizonte já faz seis anos. Fui presidente da (escola de samba) Império da Zona Norte por sete anos também, e vice-presidente da Unidos da Zona Norte. Comecei meu envolvimento com a comunidade pela escola de samba. É uma união inacreditável. Como uma família, inclusive com as brigas entre irmãos, que logo ali adiante estão se abraçando.
A gente começou com 120 pessoas, na primeira vez que desfilei. Quando parei, já estávamos com 430 integrantes na escola. Tive uma isquemia cerebral e dois AVCs, por isso não pude mais desfilar. Mas vou te contar…quase morri quando fui homenageado pela bateria da escola, em 2011. Ela parou na frente de onde eu estava assistindo, com minhas duas muletas, e começou a tocar para mim. Por sorte tinha uma enfermeira me cuidando. Chorei que nem uma criança, porque não existe nada mais lindo do que esse amor que a gente sente quando é respeitado. Quem quer homenagear uma pessoa tem que fazer isso mesmo, deixar que ela saiba disso em vida. Se gostei de ti, digo isso na tua frente. Não vou esperar tu não estar mais aqui.
O que eu tento ensinar para a gurizada é o respeito com os mais velhos. Porque experiência tu não ganhas do dia pra noite. É somente convivendo com as pessoas".
"Tento cuidar de quem precisa"
Marciano Corrêa da Silva, 79, líder comunitário do bairro Cânyon

"São 59 anos morando em Caxias do Sul. Vim girando o mundo, jogando bola, até parar aqui. Foi graças ao futebol. Não tive oportunidade de entrar em time grande, só joguei na várzea. Mas foi o que me tornou conhecido na comunidade. Trabalhei também no Samae, por muitos anos, fazendo um trabalho sério e ligado com as pessoas. Quando sofri um acidente de trabalho e fiquei quase dois anos sem caminhar, andando de cadeira de rodas, e depois de muleta, me aposentei.
Assumi a presidência do Vila Ipê (atualmente, Marciano é presidente do bairro Cânyon). Prometi que se eu ganhasse a eleição os moradores iam ter uma surpresa. E dito e feito: corri o bairro todo para fazer um abaixo-assinado, e assim surgiu a nossa Unidade Básica de Saúde (UBS).
Ser um líder comunitário é se dedicar ao povo e trabalhar por ele. É o que me deixa feliz. Não interessa quem seja, nem o partido, nem onde more. Eu tento cuidar de quem precisa tanto na Zona Norte quanto na Zona Sul, Leste ou Oeste. É se importar com a pessoa, não com a sigla.
A gente vê as associações de bairro de Caxias um pouco desunidas. Isso não acontece com a gente na Zona Norte. A gente vê nossa região melhorando um pouquinho a cada dia porque trabalha junto".
"A gente faz de coração"
Paulo Roberto da Rosa Teixeira, o Cara Preta, 49 anos, líder comunitário do bairro Euzébio Beltrão de Queiroz

"Minha família é de Porto Alegre, mas nasci em Caxias do Sul e fui criado no Beltrão de Queiroz. Vi acontecer de tudo e muito mais. Na nossa infância, a gente não tinha rua com paralelepípedo, era tudo terra batida. Tinha três casas de alvenaria no bairro todo, o resto era compensado e zinco. Uma casa em cima da outra. Foi uma infância complicada, a família não tinha boas condições financeiras que hoje a gente consegue ter. Não existia projetos sociais. A gente se criava dependendo do pai trabalhar de dia para poder comer à noite. Era bem difícil, meus pais lutaram muito para eu poder estar aqui hoje.
A atuação comunitária se deu muito por influência do meu tio, que me pegou para criar quando eu tinha nove anos, o Adão Borges da Rosa. Ele sempre foi uma liderança, junto com o Marciano e o Valdir Negrão. Viviam batalhando de um lado para o outro para melhorar a vida das pessoas, num tempo em que não tinha internet, nem celular para se comunicar. O que quer precisasse, tinha que atravessar a cidade para pedir. Por isso, eu fico tão honrado e me emociono quando estou na companhia destas duas figuras marcantes.
Líder comunitário pra mim é só uma palavra. Porque quando a gente faz de coração, pensando no bem das pessoas, isso passa a fazer parte da gente. Meu pai morava numa casa simples, de compensado, mas isso não o impedia de ajudar o vizinho a fazer a casa dele. Se isso é ser líder comunitário, tudo bem".