No ano passado, o Brasil viu a devastação do Museu Nacional em um incêndio, o desabamento de um edifício de 24 andares no centro de São Paulo e a queda de dois viadutos, um deles em São Paulo, o outro no Distrito Federal. Era tragédia e desastre para ninguém colocar defeito, mas veio 2019 e o ritmo acelerou. No começo de fevereiro, o Brasil já acumulava o catastrófico rompimento de uma barragem da Vale em Brumadinho (MG), o incêndio que matou 10 adolescentes no centro de treinamento do Flamengo e as sete mortes provocadas por causa de um temporal no Rio de Janeiro, também responsável por levar abaixo parte de uma ciclovia.
Parece uma versão moderna das 10 pragas do Egito, mas sem a parte da punição divina. Porque há algo em comum a todos esses eventos. Eles não foram infligidos pela ação de forças naturais ou sobrenaturais. Foram causados, ao que tudo indica, por pessoas e instituições que não fizeram o que deveriam ter feito. Faltaram medidas elementares de prevenção.
As falhas, omissões ou atitudes criminosas que levaram aos desastres produzem ainda mais revolta e desalento porque, em geral, não admitem desculpas. Ninguém pode dizer que aconteceu o imponderável e que não houve avisos. Quase todos os casos tinham um ar de repeteco.
A ciclovia do desabamento era a mesma que já tinha desmoronado em 2016, matando duas pessoas. O prédio que caiu em São Paulo lembrava os três edifícios que tombaram no centro do Rio, em 2012. A morte de atletas do Flamengo, confinados em um contêiner sem segurança, fez todo mundo lembrar do massacre da juventude que foi o incêndio na boate Kiss, seis anos antes. As fatalidades da chuva carioca ecoaram os 1,2 mil mortos e desaparecidos nos temporais que assolaram a região serrana fluminense em 2011.
Mas nenhum caso foi tão espantoso como o do rompimento da barragem em Brumadinho, apenas três anos depois de outra grande tragédia similar, a meros 150 quilômetros de distância, em Mariana, e envolvendo um mesmo grupo empresarial, a Vale. A teimosa repetição dos mesmos erros custou 300 e tantas vidas extras (até o fechamento desta edição, havia mais de 160 mortes confirmadas e outras quase 160 pessoas desaparecidas).
Diante desses fatos – e de sua repetição –, algumas perguntas vão se tornando inevitáveis. Estamos condenados a isso? O que fazemos de errado? É assim também em outros países? Será que somos incapazes de aprender qualquer coisa com as tragédias que nos atingem? O que precisa mudar?
Uma questão central apontada pelos especialistas é a responsabilização. Quando alguém menciona os desastres de Mariana e Brumadinho diante do perito em análise de risco e planejamento de emergência Moacyr Duarte de Souza Junior, ele começa por fazer uma correção: diz que se deve falar é em desastres da Samarco (joint venture da Vale e da BHP Billiton) e da Vale.
– Temos de nos habituar a nomear as tragédias pelos responsáveis, e não pelos locais onde elas ocorrem. Assim orientamos as pessoas a tomar consciência do que acontece por conta de quem faz acontecer, e não por conta de quem sofre a tragédia. Estabelecemos que existe uma responsabilidade objetiva. A posição de nomear pelo local escamoteia o responsável – argumenta.
Isso é importante, na visão de Souza Junior e de outros especialistas, porque um dos principais fatores para a repetição de desastres no país decorre da falta de culpabilização. No Brasil, o dirigente de uma empresa pode optar por correr o risco de causar uma tragédia porque não teme as consequências. Afinal, ninguém vai para a cadeia por causa disso.
A cultura da impunidade
Uma forma de começar a mudar essa cultura seria dar nomes aos bois, sublinhar que há culpados. E apontar para o topo das companhias, afirma Souza Junior:
– Tem de imputar responsabilidade a quem tem o poder de mudar a condição de risco. Quem são essas pessoas? São os engenheiros da Vale que foram presos? Não. São os dirigentes das empresas. Após o desastre da Samarco, os dirigentes da Vale receberam todas as informações sobre suas instalações, no que tange ao risco. Eles estavam conscientes. Os depoimentos dos engenheiros atestam que eles vinham dizendo que as coisas não iam nada bem em Brumadinho. Mas esses sinais foram ignorados. Há uma decisão intencional de postergar e de apostar no risco, em função da tibieza das leis, da fiscalização e da punição pós-evento. Como nenhum dirigente é preso, isso funciona como incentivo para que outros continuem empurrando seus passivos com a barriga. O dirigente deveria ter certeza de que será alcançado pelas consequências. Mas o fato objetivo é que, não importa quantos cadáveres ele empilhe, não é punido.
Na visão do especialista, falta, em relação aos comandantes das companhias que causam desastres, algo semelhante ao que sucedeu a dirigentes de empresas envolvidas com a corrupção política. Durante décadas, construtoras brasileiras transformaram a corrupção em aspecto corriqueiro do negócio, porque nunca imaginaram que figuras como Emílio Odebrecht, Marcelo Odebrecht ou Léo Pinheiro pudessem acabar em uma cela. A prisão desses dirigentes mudou o panorama.
– Hoje, tenho certeza de que todo mundo faz prevenção de roubalheira, daí a criação incessante, intensiva e vigorosa do chamado compliance. Mas não há compliance contra o que chamamos de acidente, porque ninguém se deu mal até hoje. Na hora em que a Justiça fizer isso, muda tudo – afirma Souza Junior.
Presidente da Associação Brasileira de Redução de Riscos de Desastres, o professor Airton Bodstein de Barros concorda que a impunidade desempenha um papel importante na repetição das tragédias e defende punições exemplares. Não só na forma de anos de cadeia para os responsáveis, mas também de multas que causem impacto financeiro relevante e que sejam realmente pagas – a Samarco, por exemplo, pagou uma parcela irrisória das autuações que recebeu pelo rompimento da barragem de Mariana.
Bodstein enxerga a punição como um instrumento capaz de colaborar para mudar o que considera ser a origem do problema: a falta de uma cultura de risco no Brasil. Pesquisador de desastres há duas décadas e coordenador do único mestrado em defesa e segurança civil do país (em funcionamento na Universidade Federal Fluminense, a UFF), o especialista ajudou a criar a associação que preside com a esperança de acelerar esse processo.
– Se continuarmos a tratar os desastres como fazemos, e falo da sociedade toda, vamos ter cada vez mais mortes no país. Não há risco zero no mundo, mas o que acontece no Brasil são mortes evitáveis, criminosas. É outra história – lamenta.
Para Bodstein, os brasileiros cresceram com a ideia de que o Brasil é um país abençoado, poupado dos grandes desastres, como terremotos ou furacões. Essa ideia é um dos elementos por trás da baixa percepção em relação aos riscos. Outro fator, para o especialista, seria a religiosidade. O brasileiro, segundo ele, tende a aceitar a tragédia como desígnio dos céus e a acreditar, diante do desastre, que é tudo assim mesmo.
– Infelizmente, isso foi criando uma cultura, que atinge todos os ramos da sociedade. Não temos percepção de risco, não temos critérios de prevenção, compramos o equipamento mas não pensamos em manutenção. Em outros lugares, como o Japão, os Estados Unidos e alguns países europeus, essa cultura existe. E não é por inteligência. É por uma questão econômica. Quem pensa pelo ponto de vista econômico sabe que se gasta muito mais quando não se investe em prevenção – afirma.
O professor usa o caso da boate Kiss, de Santa Maria, como exemplo do comportamento ideal. Cada jovem que entrasse no estabelecimento, que incendiou em 2013, provocando 242 mortes, deveria preocupar-se em verificar suas condições de segurança, como a existências de saídas livres em caso de incêndio:
– Se a porta fica fechada, então eu não vou nessa boate. Uma pessoa que fizer isso não muda nada, mas se for uma cultura, a boate vai ter de se adaptar. É uma mudança bastante profunda, mas temos de começar. E, se não começarmos a fazer isso agora, vocês jornalistas vão continuar a noticiar desastres todo dia e eu vou continuar chorando todo dia, porque não me conformo com essas mortes.
Normas básicas ignoradas
Da mesma forma, Bodstein entende que um empresário de futebol ou pai que estivesse embebido em uma cultura de prevenção jamais deixaria um adolescente passar a noite no centro de treinamento do Flamengo, tamanha era a insegurança das instalações. Ele ficou chocado com a informação, originária do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea-RJ), de que os aparelhos de ar-condicionado do alojamento estavam ligados em série e não tinham disjuntores – uma transgressão de normas elementares de segurança.
– Ali, para mim, não foi fatalidade. Foi assassinato. Houve uma negligência gravíssima – aponta.
O caso do Flamengo revela, de acordo com o especialista, outro ingrediente comum aos desastres que assolam o país, que tem a ver com as responsabilidades do poder público. Antes do incêndio, a prefeitura do Rio havia multado o clube 30 vezes pela falta de alvará de funcionamento para o CT. Mesmo assim, as instalações continuaram em uso.
– Como é que o poder público multa e não fecha? Está querendo arrecadar multa ou preservar a vida? Tem de interditar. Se multou uma, duas vezes, e não adiantou nada, tem de fechar – cobra.
Além da questão cultural e da impunidade, Bodstein acredita que a imprevisibilidade dos desastres é um fator decisivo para que as tragédias se repitam no Brasil, no que diz respeito à esfera da administração pública. Como os recursos são escassos e não há como investir em todas as áreas que demandam atenção, o governante tende a deixar sem fundos a prevenção de um desastre, que afinal pode nem ocorrer, para colocar o dinheiro em algo que parece mais urgente, como o socorro a pessoas que já estão morrendo na fila do hospital.
Nessa esfera pública, conforme Moacyr Duarte de Souza Junior, a corrupção também pode ter um peso significativo. Assim como nos desastres causados por empresas, a ganância e a busca desenfreada pelo lucro costumam estar na origem do descuido com a segurança. Em obras públicas, o empreiteiro pode rebaixar a qualidade do serviço, com consequências graves:
– Às vezes, a corrupção resulta em obras malfeitas, porque a forma de o empresário compensar um pagamento indevido e vultoso a uma autoridade é depreciando o que vai fazer. Não há mágica.
Diretor do Sindicato dos Engenheiros gaúcho (Senge-RS) e do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, o professor Carlos André Bulhões Mendes nota que há um outro elemento comum aos desastres recentes do país: em vez de falha de engenharia, há falta de engenharia. Os conhecimentos técnicos mais básicos são desprezados. E, para ele, isso aconteceu por opção.
– Nossa geração aprendeu que, quando erra um cálculo, há uma falha de engenheira. Mas não é isso o que acontece. O que a gente vê é que não há engenharia. É uma questão básica. Como é que os engenheiros, quando entram no mercado de trabalho, não conseguem aplicar coisas que eu ensino para estudantes de segundo ou terceiro ano da escola de Engenharia, métodos antigos e consagrados? Isso decorre de imprudência e negligência. É como no caso da estrada que tem buraco e eu coloco uma lama asfáltica que na próxima chuva vai afundar de novo. Daí gera um acidente, pode ter morte. Isso não é problema de engenharia, é negligência – diz Bulhões.
Para o professor da UFRGS, o modelo a seguir depois de cada desastre deveria ser o adotado quando ocorrem sinistros aéreos: uma investigação que apura todas as causas, produz relatórios públicos e promove mudanças efetivas, que atingem todo o setor. Dias depois do rompimento da barragem em Mariana, Bulhões foi chamado à cidade pelo Ministério Público Federal, para atuar como perito.
O professor avalia que não se aprendeu com o episódio – com o subsequente rompimento da barragem da Vale em Brumadinho como consequência.
– Infelizmente, de tudo o que aconteceu em Mariana, não se incorporou a nada. O que derrubou as duas barragens foi água, ou melhor, o não funcionamento da drenagem. Mas mecanismos para drenar existem, enquanto peça de engenharia são coisa bastante antiga. O monitoramento estava dizendo: olha, o nível da água está subindo, a água não está saindo. O que devia ter sido feito? Parar a produção para resolver isso. Mas a empresa não faz isso, porque seu erro compensa. O ganho que a empresa tem é tão alto que ela avalia que compensa o risco de fazer errado.
As lições aprendidas
Mas há avanços. Airton Bodstein de Barros, presidente da Associação Brasileira de Redução de Riscos de Desastres, acredita que algum aprendizado e alguma mudança costumam vir após eventos traumáticos. Mesmo que as novas leis não sejam respeitadas em sua integralidade e que as novas estruturas de apoio funcionem de maneira insuficiente, alguns passos em frente são dados. Nenhuma indenização foi paga depois do incêndio na Kiss, por exemplo, mas a legislação para evitar incêndios ficou mais rigorosa – o que foi sentido por quem teve de contratar planos de prevenção (PPCIs).
Bodstein cita como exemplo mais significativo a descomunal tragédia que atingiu municípios da região serrana do Rio em 2011, com 917 mortes confirmadas, em geral por soterramento, e outras 345 pessoas ainda desaparecidos (totalizando 1.262 vítimas). A partir dali, a Defesa Civil foi reestruturada e surgiu a mobilização que desaguou na criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações.
– Antes daquele desastre, a Defesa Civil no Brasil era ridícula. Depois, houve muita evolução. Essa evolução pode ser lenta, mas a sociedade sempre aprende alguma coisa. Mesmo no caso de Mariana, não posso dizer que não foi feito nada. Mudaram normas de controle e vários equipamentos foram instalados. O problema é que as transformações não foram suficientes, o que significa que não se aprendeu a lição, porque as medidas tinham de ser tomadas para ontem. Eu falo que as vítimas dessas tragédias são mártires. Porque depois que elas morrem, gera uma atenção. O triste é a gente pensar que só vai evoluir e aprender se ocorrerem mais mortes. Não precisa ser assim – ressalta Bodstein.