Há cerca de uma década, o banqueiro bilionário Herbert Sandler e sua mulher, Marion, perceberam que o jornalismo investigativo, exercício fundamental para a democracia, estava ameaçado de extinção. Diante da crise que se avizinhava no financiamento da indústria de notícias, decidiram injetar US$ 30 milhões em uma organização sem fins lucrativos dedicada a fazer reportagens que tivessem impacto na sociedade. Nascia assim a ProPublica, um dos mais bem-sucedidos modelos da filantropia em jornalismo.
À frente da redação da ProPublica está o jornalista Stephen Engelberg, 57 anos,um dos fundadores da unidade investigativa do The New York Times, onde trabalhou 18 anos. Engelberg fala com entusiasmo do trabalho que desenvolve, mas entende que o modelo filantrópico não é a única alternativa para o jornalismo. Para o editor, sobreviverão as empresas jornalísticas que investirem em conteúdo original e de relevância para o leitor.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida a Zero Hora por telefone.
Como foi seu começo na ProPublica?
A ProPublica abriu suas portas em janeiro de 2008. Naquele momento, todos nós estávamos em uma jornada de descobertas. Entramos aqui (ele, Paul Steiger, ex-diretor de redação do Wall Street Journal e editor-chefe da ProPublica até 2013, Richard Tofel, hoje presidente da ProPublica, e dois auxiliares) em 7 janeiro de 2008, os primeiros funcionários de um piso em um escritório de Manhattan que estava completamente vazio. Literalmente, tivemos de criar isso desde o início. Analisamos os currículos de 1,4 mil jornalistas nos Estados Unidos que se candidataram a 18 vagas. Não sabíamos se, realmente, as histórias teriam impacto. Não estava claro se os nossos parceiros em outras mídias aceitariam o material e o publicariam. Então, começamos com grande incerteza. Mas a experiência foi fantástica, porque muito cedo ficou claro que os parceiros na mídia, sim, aceitariam e publicariam o material feito pelos jornalistas da ProPublica. Então, fomos capazes de começar a publicar no site da ProPublica, em ProPublica.com, mas também em conjunto com parceiros. Nós trabalhamos com o Los Angeles Times, o The New York Times, a National Public Radio. Tivemos muita sorte em ter nossos materiais utilizados por uma variedade de parceiros. Isso, imediatamente, nos deu alguma credibilidade.
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Os Sandler fizeram uma grande contribuição no início. O que os levou a investir em jornalismo?
Nos anos anteriores à fundação da ProPublica, por volta de 2006 e 2007, os Sandlers, que estavam no mundo dos bancos e tinham muitos amigos no jornalismo, claramente começaram a reconhecer que havia um problema a caminho. Como sabemos, em todo o mundo, o modelo de negócio do jornalismo é dependente de certo tipo de publicidade. E eles puderam vislumbrar um futuro no qual a publicidade não estaria mais nos jornais, que teriam de cortar custos dramaticamente, o que foi verdade. Com isso, uma das primeiras coisas que potencialmente os jornais eliminariam seria a reportagem investigativa porque é muito cara e também compra briga com pessoas e companhias poderosas, algumas delas talvez seus anunciantes. Eles vislumbraram, de forma bastante clara, uma crise no negócio, talvez até antes que outros pudessem ver. Então, eles acreditaram que a reportagem investigativa se tornaria algo como o que nós costumamos chamar de "instituição cultural", algo como são, nos Estados Unidos, o balé, os museus, coisas que as pessoas gostam, mas que não têm uma rentabilidade suficiente com a venda de ingressos para sustentar a atividade. E o governo não é quem costuma resolver o problema. Nos Estados Unidos, nos voltamos para as doações, para a filantropia, para os indivíduos e as fundações que dão suporte a instituições que, de outra forma, talvez não existissem. Então, esse conceito para o jornalismo foi bastante novo. Foi uma ideia realmente muito estranha naquele momento. A indústria, que fora muito rica, agora estaria precisando de filantropia, de contribuições de pessoas muito ricas para a sua sobrevivência. O que os Sandlers fizeram foi dizer: "Vocês vão ter US$ 10 milhões por ano por três anos. Durante esse tempo, construam algo que possamos mostrar às pessoas para que outros possam ajudar a financiar o projeto". Hoje, do nosso orçamento anual de US$ 13 milhões, apenas US$ 2,5 milhões são dos Sandler.
Quem são os doadores agora?
Temos um variado grupo de doadores interessantes. Alguns são membros de nosso conselho de administração, afortunadamente capazes de dar suporte financeiro ao que estamos fazendo. Isso é uma parte. Temos também uma instituição maravilhosa que são as fundações, organizações bastante antigas que fazem doações, como a Fundação Ford, criada pela empresa Ford muitos anos atrás, temos vários tipos de suporte dessa fundação. Temos a Fundação Knight, criada pela família Knight, que costuma apoiar o jornalismo. Então, são membros do conselho, alguns indivíduos abastados. Nós também vendemos uma modesta quantia de produtos, dados que vendemos para certos tipos de pesquisadores e corporações, por exemplo, na área médica. Não é o suficiente para manter o lugar vivo, mas ajuda. E temos centenas de pequenos contribuidores. As pessoas olham nosso material na internet e doam US$ 5 ou US$ 10. Isso também tem contruibuído com alguns milhares de dólares ao longo dos anos. É uma combinação de fontes.
Os doadores se envolvem de alguma forma nas escolhas editoriais?
Não, de forma alguma. A primeira ação adotada pelo nosso conselho foi votar por uma resolução determinando que nenhum doador será comunicado sobre qualquer trabalho jornalístico antes que seja publicado. Eles são absolutamente proibidos de se envolver com o conteúdo editorial. Isso é muito importante. Nós falamos das coisas depois de prontas. Eles podem, evidentemente, sugerir histórias, mas não levamos adiante muitas delas.
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Vocês já investigaram empresas relacionadas a algum de seus doadores? E se tivessem de fazê-lo?
Até agora, não tivemos de enfrentar esse tipo de situação, mas eu já tive de fazer isso em publicações tradicionais em que trabalhei quando o objeto da investigação era um grande anunciante. Você não tem opção nesse tema. Você deve examinar aquilo tanto quanto faria com qualquer outra pessoa porque o seu nome está em jogo se você não o fizer. A coisa mais valiosa que a ProPublica ou qualquer outra organização tem é a sua reputação de honestidade e justiça. Se perder isso, você não tem nada. Nenhum doador vale correr esse risco.
Há alguma diferença entre o foco que vocês dão às histórias e o foco dado por veículos tradicionais?
Talvez a maior diferença seja o fato de que nós ficamos atrás da história meses e, quando necessário, anos. Estamos determinados a permanecer em uma história o tempo que acharmos que ela precisa para ter ainda mais impacto. Outros veículos às vezes têm pontos de atenção mais curtos.
Como funciona a parceria com a mídia tradicional?
A ProPublica foi uma ideia de Herbert Sandler e de sua mulher, Marion, que morreu há alguns anos (em 2012). E, para eles, a coisa mais importante que poderíamos ter com uma história era impacto. Ter um efeito, fazer diferença. Eles estavam muito mais animados com isso do que com o pensamento "vocês precisam de um milhão de leitores". Nós aceitamos publicidade, mas é muito pouco. Não é um negócio. Não temos que fazer dinheiro por meio de um milhão de visitas em uma matéria, então o impacto de uma reportagem é a métrica a partir da qual avaliamos o nosso trabalho. E, para isso, quando pensamos em parcerias, pensamos que parceiro podemos encontrar para aumentar o impacto da história. Se estamos trabalhando em uma pauta sobre o nosso governo em Washington, talvez o Washington Post seja o parceiro porque é lido por muitos integrantes do governo. Se escrevemos sobre o Estado de Nova York, então talvez o jornal em Albany (capital do Estado de Nova York) seja o melhor, porque é lá que estão o Capitólio e os órgãos governamentais. Realmente, depende do impacto. Também preferimos trabalhar com parceiros que não são exatamente como nós. Se a gente escreve histórias em forma de texto, talvez ter um parceiro de rádio ou televisão seja uma boa ideia.
O modelo da ProPublica inspirou experiências semelhantes? É um modelo que pode funcionar em maior escala?
Sabemos que na Grã-Bretanha há algumas organizações que fizeram isso, no Brasil há um grupo chamado A Pública (Agência Pública) e acho que os inspiramos. Conheço alguns na Alemanha. Acredito que nós e outras organizações sem fins lucrativos nos Estados Unidos, não somos os únicos nos Estados Unidos (uma das experiências mais tradicionais é a do Center for Public Integrity, fundado por Charles Lewis, em 1989), inspiramos as pessoas a pensarem um pouco diferente, o que é ótimo. Provavelmente não é a única resposta ao problema, mas é uma resposta. É uma solução possível ao problema de como em uma democracia conseguimos ter as notícias que precisamos quando os jornais estão enfrentando uma crise terrível. Essa é uma questão global.
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O jornalismo investigativo está mesmo em risco?
Agora temos um pouco mais de informação em relação ao que os Sandler percebiam quando deram início ao nosso trabalho. Acho que a crise é real, que a crise continua, mas também acho que há motivos para se ver alguma esperança. Algumas das novas publicações estão entendendo que, na internet, o melhor que se pode ter é conteúdo original. Você vê nos Estados Unidos, por exemplo, algo como o Buzzfeed, um site muito popular, que criou uma unidade de reportagem investigativa. Eles contrataram um dos meus editores (Mark Schoofs, vencedor do Pulitzer de Reportagem Internacional em 2000 por uma série sobre Aids na África, publicada pelo semanário independente The Village Voice) para conduzi-la. E meu entendimento é que agora eles têm umas 20 pessoas fazendo reportagem. Eles têm muito mais gente fazendo outros tipos de trabalho, mas é animador pensar que existe uma crença na importância do jornalismo investigativo.
No contexto atual, no qual a indústria dos jornais passa por uma profunda revisão de seu modelo de negócios, os jornais deveriam estar pensando em investir mais nesse tipo de jornalismo em vez de cortá-lo?
Acredito que sim. Trabalhei em uma redação de um jornal regional chamado The Oregonian e posso dizer que, sim, acredito que todos os jornais deveriam pensar dessa forma. (Sob sua supervisão, o jornal venceu o Pulitzer por breaking news e foi finalista do Pulitzer por uma investigação sobre metanfetaminas e caridade para ajudar deficientes). Todos acabarão tendo de publicar na web como nós fazemos e todos vão precisar de conteúdo original. Então, acredito que não haja outra resposta. Acredito que, ao longo do tempo, veremos notícias encorajadoras. Mas é difícil. Na mídia impressa, você tem os custos de impressão, o papel, os custos de entrega, toda essa estrutura pesada que você tem de carregar como um grande peso.
Por que é tão difícil fazer jornalismo investigativo?
Não é tão difícil, você só precisa de algumas coisas. Precisa ter paciência para perder tempo. O problema é que as pessoas frequentemente querem resultados instantâneos, o que eu posso descobrir em um ou dois dias. E não é assim que funciona. Então, você deve ser muito paciente e há muita impaciência no momento. E, obviamente, você deve estar disposto a comprar briga com algumas pessoas importantes. Às vezes, as pessoas temem se indispor, mas você precisa se dar conta de que tem de fazer isso - e de fato é a melhor maneira. Eu fui introduzido a esse posicionamento há muitos anos por jornalistas mais experientes do The New York Times. Eu disse a eles "se eu deixar todos na área que eu cubro bravos e eles não falarem mais comigo, como vou conseguir boas histórias?". E eles disseram: "Bom, você não vai conseguir as histórias que você quer de mão beijada, mas você vai conseguir as histórias que eles não querem que você tenha. E são essas histórias que você deveria estar publicando". Acho que é uma maneira correta de pensar sobre a investigação. Muitos jornalistas têm medo de que irão perder o acesso às fontes, que não terão conexões com todas essas pessoas importantes. Bem, talvez eu não seja convidado a uma festa, mas assim é a vida.