Investigadores da Lava-Jato - operação de procuradores da República e policiais federais que começou a desvendar a corrupção na Petrobras e hoje abrange vários contratos em obras de infraestrutura - receberam há duas semanas, em Curitiba, um dossiê. O documento se refere a uma importante obra no setor portuário brasileiro, a dragagem dos acessos ao porto de Rio Grande.
Conforme auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) realizada em 2013, o aprofundamento dos canais do terminal marítimo teria sido superfaturado em R$ 47,4 milhões. A empresa Odebrecht, que tem seu presidente preso na investigação de desvios na petroleira, está entre as citadas.
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Os procuradores da República que atuam na Lava-Jato planejam se debruçar sobre o assunto porque já constataram que, além do petróleo, as empreiteiras investigadas teriam superfaturado contratos em outras áreas, como a de energia nuclear.
Os investigadores poderão inquirir alguns dos 23 colaboradores premiados da operação a respeito de possíveis irregularidade em dragagem - especialmente as que envolvem empresas que já tiveram dirigentes denunciados criminalmente. Dois delatores que mencionaram corrupção por parte da Odebrecht são Paulo Roberto Costa (ex-diretor da Petrobras) e Dalton Avancini, da empreiteira Camargo Corrêa.
O ponto de partida será a auditoria realizada pelo TCU. Os auditores calculam que o consórcio formado pela empreiteira Odebrecht e pela belga Jan de Nul (que atua no país desde 1997) aplicou duas taxas semelhantes na composição dos custos da dragagem. Os valores referiam-se a margens de incerteza de prazos na realização da obra (por fatores como maré e objetos no mar).
A superposição das taxas teria provocado sobrepreço no custo final da obra, informa a auditoria. Teria influenciado também, para ocorrer superfaturamento, a aplicação desnecessária de um fator multiplicador sobre o custo relativo ao volume de material a ser retirado pelas dragas.
Os procuradores da Lava-Jato desconfiam que taxas embutidas em composição de custos e aditivos (adições de valores posteriores à assinatura do contrato), em alguns casos, são truques contábeis usados para disfarçar corrupção. Vão verificar se isso ocorreu em Rio Grande.
O contrato de dragagem celebrado em 10 de agosto de 2009 entre Odebrecht, Jan de Nul e governo federal (por meio da Secretaria Especial de Portos) foi de R$ 196 milhões. Estabelecia três anos de aprofundamento e alargamento dos canais de acesso ao porto de Rio Grande e manutenção deles. Prevista para ser concluída em 2012, a obra foi finalizada no ano passado. O canal externo passou de 14 metros de profundidade para 18 metros. O interno, de 14 metros para 16 metros. As obras ajudaram a ampliar em cerca de 35% o volume de cargas e descargas de navios no porto de Rio Grande.
Acontece que os pagamentos, ocorridos entre 2009 e 2010, foram questionados pelo TCU. O relator do processo, ministro Walton Alencar Rodrigues, afirma que o referencial mais alto implicou aumento do orçamento-base da licitação e a seleção de proposta mais onerosa ao governo. As conclusões da auditoria foram endossadas pelos outros ministros do tribunal, que determinaram a abertura imediata de processo específico para reaver o dinheiro. O TCU ordenou ainda identificação e citação dos responsáveis pelo sobrepreço.
O porto de Rio Grande já está com novo processo de dragagem por ser feito. A licitação deste ano deu como vencedor para o aprofundamento dos canais, mais uma vez, um consórcio liderado pela belga Jan de Nul, juntamente com a Dragabras (nome adotado no Brasil pela empresa belga Deme). O contrato, de R$ 368 milhões, deve ser executado a partir de 2016.
Os principais problemas apontados pelo TCU
Em agosto de 2009, foi assinado contrato para a dragagem de canais no porto de Rio Grande no valor de R$ 196 milhões. As obras, previstas para ficarem prontas em 2012, só foram concluídas no ano passado. Conforme auditoria do TCU, o contrato teria sido superfaturado em R$ 47,4 milhões. Confira as principais dúvidas no processo, conforme dossiê recebido pela Lava-Jato.
Falta de transparência
O orçamento-base que fundamentou a concorrência internacional vencida pelo consórcio Odebrecht-Jan de Nul não indicou fontes de referência para definir parâmetros no cálculo do custo do metro cúbico de dragagem. Tampouco teria feito pesquisa de mercado do valor de aquisição de draga usada no aprofundamento dos canais.
Sobrepreço e superfaturamento
I) A primeira fonte de sobrepreço apontada pela fiscalização refere-se à inclusão, em duplicidade, do item Despesas Eventuais na composição de custos. Conforme auditoria, a previsão dessa despesa seria indevida porque os gastos oriundos de eventos imprevisíveis e extraordinários já estariam cobertos pela Taxa de Margem de Incerteza.
II) A auditoria constatou ainda que outros itens da planilha teriam gerado pagamentos de riscos em duplicidade. Os riscos de danos à draga estão resguardados pelo seguro (4% do preço do equipamento) e pelo provimento para grandes reparos (10% do preço da draga). Mas, o percentual de 4,5% (taxa de margem de incerteza), incluído no contrato, já cobriria completamente os riscos associados à operação da draga.
III) A auditoria apontou que teria ocorrido elevação indevida do preço estimado do metro cúbico do serviço de dragagem, de R$ 9,10 (previsto no projeto) para R$ 11,13. Com as Despesas Eventuais e o aumento do valor orçado para o metro cúbico da dragagem, a equipe de auditoria calcula que teria ocorrido sobrepreço de R$ 47 milhões. Como o serviço foi concluído, o sobrepreço virou superfaturamento.
Adiantamento de pagamentos
Na execução do contrato, a equipe de auditoria registrou a aprovação e o pagamento da quarta e quinta medições de serviços sem a prévia comprovação de trabalhos já contratualmente definidos. Ou seja, teria ocorrido uma antecipação de pagamentos sem a anterior liquidação da despesa.
Fiscalização deficiente das obras
Em outro ponto da auditoria, foi questionada a ausência de adoção de providências por parte da Secretaria Especial de Portos da Presidência da República acerca de serviços de apoio à fiscalização das obras de dragagem no porto de Rio Grande. Os auditores dizem que, após mais de três meses de início das obras, nenhum relatório de fiscalização isento de erros havia sido entregue à secretaria pelo consórcio operante.
Empresas asseguram que cálculo está correto
O governo federal e as empreiteiras, em defesa promovida diante do Tribunal de Contas da União (TCU), garantem que não há embasamento técnico para alegações de sobrepreço na dragagem em Rio Grande. De parte do governo, a defesa da obra foi feita pelo Centro de Excelência em Engenharia de Transportes (Centran), do Ministério dos Transportes.
O órgão explica que o item Despesas Eventuais inclui os riscos inesperados e imprevisíveis durante a dragagem. O Centran justifica os valores adotados para as despesas eventuais e diz que são fruto da metodologia de dragagem por resultados previstos em lei. O Centran insiste que a existência simultânea de dois fatores (Taxa de Margem de Incerteza e Despesas Eventuais) está correta.
O Centran informa também que, em vez de corrigir o custo mensal da dragagem ou acrescentar mais uma draga, optou-se por corrigir o preço unitário com fator multiplicador - o aumento do metro cúbico. Ou seja, elevar o pagamento pelo mesmo equipamento. Isso possibilitaria à empresa vencedora "mobilizar os meios necessários para que a produtividade fosse igual ou superior à necessária".
Na resposta ao TCU, o consórcio Odebrecht-Jan de Nul, que realizou a dragagem em Rio Grande, informou que, na planilha de preços apresentada, não foram consideradas despesas eventuais. O consórcio disse que respeitou exigências de produtividade e prazo estabelecidas no contrato ao escolher a draga. O equipamento, segundo o consórcio, teria atingido produção mensal de material dragado acima do requerido pela licitação. A Odebrecht, em nota oficial, afirmou que "o tema em questão é objeto de um processo de auditoria junto ao TCU, ao qual estão sendo apresentadas todas as explicações referentes aos apontamentos levantados pelo seu órgão técnico".