![PRISCILA FORONE / AGÊNCIA DE NOTÍCIAS G PRISCILA FORONE / AGÊNCIA DE NOTÍCIAS G](http://www.rbsdirect.com.br/imagesrc/17517217.jpg?w=700)
Há um mês, Luiz Edson Fachin enverga a toga do Supremo Tribunal Federal (STF). A posse em 16 de junho encerrou uma trajetória nada fácil até a mais alta Corte do país. Da infância simples no interior do Paraná à conturbada aprovação de seu nome no Senado, o ministro carrega lições que o ajudam em sua nova função - ter fé, perseverar e não guardar rancores.
Nascido em Rondinha (RS), Fachin foi ainda bebê para Toledo (PR). Único filho de um agricultor e de uma professora, aprendeu a desvendar as letras em casa, com ajuda da mãe. Cresceu nos livros, formou-se em Direito, fez mestrado, doutorado, passou por centros no Exterior, defendeu posições progressistas em questões de direitos humanos, construiu uma sólida carreira como professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e como advogado.
Postulante ao STF desde o governo Lula, o jurista recebeu a indicação de Dilma Rousseff. A fragilidade política da presidente quase lhe custou a cadeira. Senadores ameaçaram rejeitar Fachin, que encarou mais de 12 horas de sabatina e uma votação tensa em plenário. O ministro garante que saiu gratificado, sem mágoas. Assegura que cortou "os cordões" com as "circunstâncias pretéritas" e que a Constituição está acima das convicções pessoais do juiz.
Aos 57 anos, casado há 38 com a desembargadora Rosana Fachin, o novo ministro ainda se adapta ao cargo. Na terça-feira, recebeu Zero Hora em seu gabinete. Por uma hora e 10 minutos, falou sobre a nova realidade, relembrou sua trajetória, mostrou os textos que degusta, entre eles a última encíclica papal. Homem de fé, no STF Fachin já traçou sua conduta: seguir a Constituição como quem professa um credo.
O senhor completa um mês no Supremo. Como foram os primeiros dias na Corte?
Do ponto de vista qualitativo, estou encontrando aquilo que esperava: o desafio de olhar sempre numa perspectiva constitucional as matérias submetidas ao Supremo. Do ponto de vista quantitativo, encontrei 1,5 mil processos no gabinete e, nos primeiros 15 dias, recebi mais 200. Estabeleci três frentes para cumprir o preceito da razoável duração do processo.
Quais são as frentes?
A primeira foi fazer um levantamento dos processos mais antigos do gabinete. A segunda foi fazer frente às novas distribuições com pedido de urgência ou liminares. O número de habeas corpus impressiona. Recebo, em média, três por dia. A terceira frente foi contribuir nos julgamentos dos colegiados sem adotar algum procedimento que, embora legítimo, pudesse retardar o andamento. Por exemplo, não pedi vista de nenhum processo até agora.
O volume de processos mostra que o brasileiro judicializa demais as questões?
O aumento de judicialização foi proporcional à redemocratização, foi uma conquista da cidadania. O que nos falta são recursos materiais e humanos para dar conta disso.
Sua aprovação no Senado foi conturbada. Houve temor de que seu nome fosse rejeitado?
A vida me proporcionou conhecer o Senado, de tal forma que saí gratificado. Sou um defensor dessa forma de escolha dos ministros do Supremo, pois há uma confluência dos Três Poderes. É o que temos de menos ruim. Lá atrás, escrevi e sigo acreditando que a sabatina deve ser realizada com a necessária verticalização dos temas, para que o indicado preste contas de tudo aquilo que disse e escreveu. Foi o que o Senado fez durante as horas todas da sabatina.
A sabatina durou mais de 12 horas.
Mais do que isso, dos 81 senadores, estive pessoalmente antes da sabatina com 78. A sabatina começou antes, já no gabinete dos senadores, e os diálogos foram frutíferos. Entendo que o Senado pode aprovar ou não o indicado. A tarefa do Senado não é homologatória. Quando acabou a sabatina, entendi que dei as respostas que o momento exigia.
A presidente Dilma Rousseff o indicou em um momento de fragilidade e quase nove meses depois da aposentadoria de Joaquim Barbosa. O contexto contaminou a sabatina do senhor?
Escolher um ministro da Suprema Corte não é tarefa simplória. Evidentemente, as questões de natureza econômica acabaram permeando porque o Senado também debatia outros temas e, não raro, determinado assunto acaba contaminado pelo outro.
Senadores exploraram textos do senhor sobre a função social da terra, apontaram uma militância pró-MST. O que o senhor escreveu de fato sobre o tema?
O que escrevi foi, de algum modo, circunscrito numa encíclica papal que falava que sobre a terra pende uma hipoteca social. Os bens de produção, que merecem proteção na economia de mercado, têm função econômica e também social, tal como está na Constituição. Como irei me portar em julgamentos? Nos exatos limites da Constituição, que prevê prévia e justa indenização, compreendendo o valor da terra nua, das benfeitorias. A indenização precisa ser justa para eventualmente ali se realizar um assentamento.
É constrangedor ser avaliado por senadores que são investigados no âmbito da Operação Lava-Jato?
Não há, da minha parte, nenhum constrangimento, não tenho problema em qualquer apreciação que envolva os senadores. Tenho, na verdade, lá como sabatinado e aqui como ministro, a compreensão de que, ao tomar posse, encerra-se um livro e abre-se outro.
Como o ministro se desvincula do presidente que o indicou?
A história é minha testemunha. Em vários momentos, ministros (do Supremo) tomaram posições firmes envolvendo interesses diretos ou indiretos do presidente que os indicou. Comigo não será diferente. É, digamos assim, uma nova vida que corta os cordões com todas e quaisquer circunstâncias pretéritas. Isso não significa que em um ou outro caso eu não me declare impedido e averbe a minha suspeição.
Há casos para se declarar impedido?
Venho de 30 e poucos anos na advocacia. Quando houver interesses que, de alguma forma, tratei como advogado, vou averbar suspeição ou declarar impedimento. Posso dizer com clareza de espírito e alma leve: nenhuma circunstância que se passou durante o procedimento (aprovação no Senado) que, repito, me gratificou, me levará a suspeição ou impedimento.
O manifesto que o senhor leu em 2010, de apoio à candidatura de Dilma, suscitou polêmica. Diziam que o STF teria um ministro petista. O senhor mantém a posição?
Em 2010, fui chamado a tomar posição e, como cidadão, explicitei a escolha. Hoje, na posição em que me encontro, a primeira prevenção é não olhar com os olhos do presente o passado. Chamei em meu abono muitos ministros que declararam voto nesse ou naquele candidato, e outros que, inclusive, foram candidatos ou integraram o parlamento. Cito o saudoso ministro Paulo Brossard, o ministro Nelson Jobim. A história será testemunha do compromisso que assumi no STF. Minhas ações vão ser a medida da correção das minhas palavras.
Desde o julgamento do mensalão, algumas pessoas enxergam os ministros como vilões ou heróis, conforme suas ideologias. Atrapalha a independência da Corte?
A única pressão que pode se projetar para dentro da Corte é a incidência rigorosa da ordem jurídica. O julgamento da ação penal (470, o mensalão) evidenciou que o Judiciário não é apenas uma autoridade, como se dá em alguns países, mas também é um poder, no sentido em que chama para si colocar limites e impor responsabilidades quando cabíveis.
No Brasil, parece ser rotineiro pessoas que tentam fazer justiça com as próprias mãos, como nos casos dos linchamentos. O brasileiro está numa inflexão conservadora?
A Constituição tem um catálogo de direitos fundamentais. Cumpre às políticas públicas, bem como também ao Poder Judiciário, preservar esses direitos. Se refuta qualquer forma de justiça com as próprias mãos. É isso que distingue os pactos civilizatórios da barbárie. E se nós não tivermos esse limite voltaremos para aquilo que se chama de Estado Hobbesiano, ou seja, a guerra de todos contra todos.
O que leva as pessoas a buscarem a sua própria justiça?
Há um conjunto de circunstâncias que apontam nessa direção, infelizmente. Uma delas é a deterioração da autoridade da lei. A força da lei no Brasil perdeu muito de sua densidade simbólica. Muitos são estimulados por uma sensação de impunidade que chega a ser quase um mito. Se examinarmos os mais de 600 mil encarcerados que temos, veremos que não é possível afirmar haver dose alta de impunidade.
As pessoas levam em conta esses dados?
Quando as pessoas são confrontadas com esses dados, muitas vezes, fica o sentimento de que há uma punição apenas para determinados extratos sociais. De algum modo, nos últimos tempos, o Judiciário desmente a percepção. A lei deve ser igual para todos. As condições econômicas e sociais também influenciam neste contexto, o Brasil ainda tem um dever de casa a fazer, no sentido de diminuir os graves índices de desigualdade.
A Câmara discute a redução da maioridade penal. Ela fere ou não a Constituição?
Muito provavelmente essa matéria será apreciada aqui no Tribunal, não vou adiantar a inflexão que tenho por esse tema. É um assunto que, neste momento, está tendo o seu debate no foro que julgo certo e adequado, o Legislativo.
Parlamentares criticam uma eventual vontade do Supremo de legislar. A crítica é justa?
É um debate interessante. De um modo geral, o Supremo é o que chamamos de legislador negativo, portanto não tem a função de preencher os vazios legislativos, exceto quando a inércia do legislador gera uma violação ou impede o exercício de algum direito fundamental.
Um exemplo do STF legislando seria o veto ao financiamento privado nas campanhas eleitorais? Cabe ao Judiciário ou seria adequado aguardar a reforma política?
O desenlace deve mesmo se dar no âmbito do Legislativo. Excepcionalmente, o Judiciário poderá ser chamado para verificar se o devido processo legislativo foi obedecido ou se foi ferido algum princípio eleitoral como, por exemplo, a liberdade partidária. O tema já estava em discussão no Tribunal, formou-se maioria dos ministros e houve pedido de vista que, a meu ver, não deixa de reconhecer a complexidade do tema.
O pedido de vista do ministro Gilmar Mendes tranca o julgamento há mais de um ano. É um período razoável?
O regimento do Supremo diz que, na segunda sessão subsequente ao pedido de vista, o voto deve ser apresentado. Chamamos o prazo de impróprio, porque, a rigor, quando esse prazo não é atendido, há muitas razões que são usadas como justificativa.
Qual a sua opinião sobre as prisões de executivos de empreiteiras na Lava-Jato?
O direito e as garantias individuais, dentre eles o direito à ampla defesa, não podem nem devem ser mitigados. Do que tem se visto dos julgamentos, a finalidade do trabalho da Justiça de primeiro grau vem sendo alcançada, precisamente essa de fazer a adequada instrução. Se isso não for garantido, há recursos para as instâncias superiores. Vejo com muita tranquilidade o que está ocorrendo porque é, na verdade, a dinâmica do Estado democrático de direito.
O senhor é do Paraná, origem da Lava-Jato, e trabalha com o juiz Sergio Moro no corpo docente da UFPR. Há um afã justiceiro na conduta do magistrado?
Conheço Moro como professor e como magistrado. A percepção que tenho é das melhores, no sentido de ser um juiz que está buscando cumprir seu papel.
No STF, muda a forma de ver o Brasil?
A racionalidade que tem um magistrado constitucional é muito diferente daquela que tem, por exemplo, o professor de uma universidade. O juiz não pode ser escravo ou servidor de suas convicções pessoais. A Constituição que lê o leitor da Zero Hora, o ministro ou o jornalista é a mesma. E este é o desafio: em uma linguagem que é técnica, explicitar à sociedade as premissas da decisão. Penso que faço bem a travessia deste rubicão.
O senhor já se adaptou aos rituais do Supremo?
A adaptação ritualística é uma adaptação progressiva, afinal de contas, depois de 57 anos, todos carregamos um modo de ser e de estar. Tenho vindo pela manhã e saio daqui, não raro, por oito, nove da noite. Há um conjunto de restrições de ponto de vista pessoal. Reajustei ou cancelei os compromissos acadêmicos marcados, terei uma turma de pós-graduação na Universidade Federal do Paraná no semestre. É a única concessão parcial que faço.
As leituras, para um acadêmico, são um hábito. Elas estão em dia?
Tenho sempre uma determinada quantidade de livros que estão à espera, costumo ler dois ou três simultaneamente, de áreas distintas. Uma análise que tem sido muito importante é um livro do Jean-Pierre Lebrun que se chama Clínica da Instituição, no qual analisa, sob o ponto de vista psíquico, a formação de determinados quadros mentais que são arquétipos interessantes para compreender o nosso tempo. Neste último final de semana, fiz uma leitura da encíclica papal, Laudato Si, ou Louvado Seja. Extraordinária.
Agradou a defesa do papa Francisco por uma mudança de hábitos?
É um texto extraordinário. No começo deste século, está na pauta o consequencialismo constitucional. Quem toma uma decisão precisa saber que dali a cinco, 10 anos haverá um conjunto de consequências. No caso das gerações futuras, o que tem tudo a ver com o ambiente, é uma matéria de suma importância. Claro que a visão do Papa é cristã, mas digo que esse é um texto que interessa ateus, ateias e aos que têm fé.
É importante para quem toma decisões pensar nas gerações futuras.
Agora, estou lendo um livro de um ex-juiz de corte constitucional. Hugo Lafayette Black, A Fé Constitucional. Essa frase me agrada sobremaneira: "A Constituição é minha Bíblia legal".
A frase vale para sua nova função?
Tenho presente que a Constituição precisa operar como um preceito para ser seguido religiosamente.
O senhor nasceu em Rondinha e foi bebê para o Paraná. Considera-se gaúcho ou paranaense?
Sou um paranaense que nasceu gaúcho e nunca esqueceu suas origens. Tenho orgulho de onde nasci e muito orgulho de Toledo, a terra que me acolheu e onde vivi infância e adolescência. Faço jus à afirmação de que o Paraná é o lugar de todas as gentes. Na minha vida no magistério, andei pelo país inteiro.
Foi uma migração difícil?
Meu pai, Dionísio, era agricultor. Saímos do Rio Grande do Sul com os avós e os tios, e fomos para o Paraná em 1960. Tinha dois anos. Chegamos a Toledo, uma cidade que estava começando, não havia asfalto. A agricultura à época era fundada no braço, portanto plantava-se feijão, milho. Fui alfabetizado por minha mãe, Otília, professora de uma escola-rural primária. Ela percebeu que eu tinha gosto pela leitura e fez um esforço para me colocar, já no segundo ano, num colégio na cidade.
A origem simples deixou ensinamentos?
Os melhores possíveis. Já disse que levo, no bolso, um pedacinho de terra por onde passei. É valorizar as oportunidades que a vida oferece sem superlativá-las nem diminuí-las. Nossa casa não contava com energia elétrica, por isso tive as primeiras aulas com um lampião a gás. À noite, a mãe ligava (o lampião) e ensinava as letrinhas. Isso fica muito presente, é importante para que a gente ouça o silêncio daqueles que não têm voz para chegar ao centro do poder. Em cada jurisdição de primeiro, de segundo grau do Brasil é preciso que o Supremo faça chegar a sua mensagem.
Seu sonho era ser ministro do Supremo?
Não, realizei o meu sonho de infância e juventude tornando-me professor. Tornar-se ministro do Supremo Tribunal Federal foi o sopro das circunstâncias e do destino.
Como fazer para que os que não têm voz sejam ouvidos pela Justiça?
É necessário que a Justiça seja acessível. Isso significa descentralização, desburocratização, informatização. Outra tendência importante é valorizar o juiz de primeiro grau, que é o juiz dos fatos, que faz a instrução probatória. Ele não pode ser visto como rito de passagem para chegar ao tribunal ou eventualmente ao Supremo.
O anteprojeto da Lei da Magistratura prevê uma série de benefícios aos juízes. É correto?
É preciso que a carreira da magistratura seja atrativa para que os vocacionados sejam chamados a prestar um serviço que é de interesse de toda a sociedade. Quem ingressa em uma carreira pública, já ingressa sabendo que há limites, os quais exigem prudência e contenção. Quanto menos elementos agregáveis aos subsídios, melhor, porque com mais clareza a sociedade verá a remuneração que um servidor está a receber. A regra deve ser a transparência.
Alguns magistrados defendem o auxílio-educação para seus filhos. É razoável em um país com tantas desigualdades o Estado custear a educação dos filhos de magistrados?
Eu não faria dessa maneira. O juiz não está nem pode estar acima da sociedade onde vive. É possível que muitas pessoas que estão ao entorno dele não tenham acesso à educação alguma. Não podemos ter disparidades assombrosas, como há na sociedade brasileira, entre o menor e o maior salário.