Penso nas condições que me permitiram estar aqui, escrevendo. Os brasileiros, definidos por Darcy Ribeiro como o retrato da diversidade, acolheram meus avós europeus. Os paternos fugiram dos pogroms czaristas, e os maternos escaparam no limite, em 1939, das garras nazistas na Polônia. Eram todos judeus. Ganharam o oceano rumo à incerteza. Desesperançados e desesperados, voltavam o rosto para a terra das suas infâncias e dos primeiros passos, que se afastava lentamente.
Pranteavam a família que ficava e que jamais voltariam a ver, como lágrima perdida na tempestade do genocídio. A perseguição antissemita os empurrava para o mar revolto, a misteriosa alternativa ao inferno certo em terra firme.
Teriam de abrir nova página num caderno vazio, sem referências afetivas. Chamavam-nos de imigrantes, mas a definição exata ainda viria a ser cunhada. Eram refugiados, designação adotada em convenção de 1951, que o Brasil foi o primeiro país do Cone Sul a ratificar.
Essa é a história da minha família. Por conta de tão sofridas circunstâncias, tenho no DNA o impulso de me pôr no lugar do segregado. Sigo a ética seminal de não fazer ao outro o que não quero para mim. Essa filosofia judaico-cristã forjou a civilização ocidental, que preconiza a democracia e a aceitação das diferenças. O grande apreço que tenho pelo valor da diversidade até já me levou, recentemente, a escrever livro sobre o assunto.
Mais nove haitianos chegam a Porto Alegre
Dias atrás, em reportagem sobre as pessoas que se jogam ao mar aberto na busca de chão para pisar, entrevistei a professora Deisy Ventura, da USP. Veio dela uma frase curta, lúcida, definitiva:
- O refugiado não é aquele que deseja sair, é aquele que não pode ficar.
Precisa mais? A frase da Deisy é menor que um tuíte, mas diz tudo.
Já vi espertalhão tentando aplicar golpe em prestativo frentista senegalês, dizendo "meia" em vez de seis, embaralhando números e medidas para depois trocar litros por reais. Vi aplicado haitiano aprendiz ser xingado por demorar no atendimento. Em redes sociais, li textos que tentavam lustrar a xenofobia bruta. São pessoas que ofereceriam a mão da filha em casamento caso os forasteiros fossem holandeses de pele clara e olhos azuis.
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Convido vocês a refletir e sugiro o velho método: ponham-se no lugar do outro. Aceitem a turma que vem vindo. Pensem na frase da Deisy. Essa gente não desejava sair, mas implora por um lugar onde possa ficar em paz.
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Artigo
Léo Gerchmann: estenda a mão aos haitianos
Leia o artigo publicado em Zero Hora desta quinta-feira
Léo Gerchmann
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