Estava tudo preparado. O padrinho viria de Atlântida Sul para se juntar à família e aos amigos na casa de uma tia, em Novo Hamburgo, para celebrar os 17 anos de Maicon Doglas de Lima. Mas no último 26 de maio, aniversário do jovem, não teve comemoração, e a marca no calendário é de saudade. Nesta segunda-feira, completam-se quatro meses desde o dia em que Maicon foi assassinado com dois tiros pelas costas, em São Leopoldo, após uma confusão entre torcidas de futebol, dispersada pela Brigada Militar (BM).
De lá para cá, a Delegacia de Homicídios da cidade concluiu investigação apontando que os disparos teriam partido de policiais militares (PMs) - nove foram indiciados. A BM encerrou seu inquérito policial militar (IPM) indiciando oito brigadianos. Nos dois casos, houve indicação que os PMs teriam tentado substituir uma das balas retiradas do corpo do adolescente para atrapalhar a apuração. O processo aguarda o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público (MP).
- Estou esperando que a Justiça Militar nos remeta a versão integral do IPM, que também ouviu PMs de Novo Hamburgo, para confrontar às provas produzidas pela Polícia Civil, que só ouviu brigadianos de São Leopoldo. É preciso esse contexto geral para individualizar a conduta de cada envolvido e oferecer uma denúncia justa - afirma o promotor Sérgio Rodrigues, que atua no caso.
Conforme Rodrigues, a Justiça Militar deve remeter o IPM em até 10 dias e, como a minuta da denúncia está praticamente pronta, aguardando a conferência dos dados, a apresentação à Justiça deve ocorrer em, no máximo, 15 dias.
Pais fizeram tatuagem em homenagem ao filho
Naquele 1º de fevereiro, Maicon saiu da casa alugada onde morava com os pais e a irmã de 12 anos para incentivar o Novo Hamburgo contra o arquirrival Aimoré. O empate em 2 a 2 no Estádio do Vale desagradou ambas as torcidas e, após a partida, iniciou-se uma confusão na estação Santo Afonso do trensurb. Ele e alguns amigos teriam corrido até a Rua Tom Jobim, onde a família tem uma casa à espera de reforma, e aguardado os ânimos se acalmarem. Depois, seguiram até a esquina da Rua Carlos Barbosa com a Avenida Mauá, onde ficaram conversando.
- Estava em casa tomando chimarrão quando veio um vizinho perguntando pelo guri dele e falou da confusão. Aí pensei, vou atrás do Maicon - conta o pai do rapaz, Vitor Augusto Batista de Lima, 40 anos, que pegou a bicicleta e saiu em busca do filho.
Ao chegar próximo da esquina onde o grupo estava, conta Vitor, avistou a chegada da viatura da BM, de onde os brigadianos já teriam descido dando tiros para o alto. Os amigos correram pela Carlos Barbosa e Maicon dobrou na Rua Gaspar Silveira Martins, em direção à casa da família, a 150 metros dali, na Rua Castelo Branco. Quando o pai deu a volta na quadra, encontrou o filho no chão, baleado, rodeado por brigadianos.
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Quatro PMs, todos do 25º Batalhão, chegaram a ser presos, mas acabaram soltos semanas depois. No retorno ao trabalho, foram recebidos com bolo e refrigerantes.
- Ver eles comemorando foi revoltante. Passou o Dia das Mães, meu aniversário, o do Maicon e não tive ele para dar um abraço. Em vez de dar presente, vou fazer o que tenho feito todos os meses, comprar flores para o túmulo dele - lamenta a mãe, Sara Espindola, 37 anos.
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Para além da saudade, a família luta para se reerguer - Maicon trabalhava havia dois anos como auxiliar de pedreiro e contribuía com as despesas. Quatro meses depois, Sara espera os caminhos da Justiça. Restará para sempre a lembrança tatuada nos braços de pai e mãe: "Maicon eterno".
Polícia Civil e BM divergem sobre intenção de homicídio
Que ao menos um policial militar foi responsável pelos tiros que mataram Maicon Doglas de Lima, as investigações de Polícia Civil e Brigada Militar (BM) estão de acordo. Há divergência, porém, quanto à intenção do crime. A apuração da Delegacia de Homicídios de São Leopoldo concluiu que mais de um PM atirou para matar o jovem.
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O inquérito policial militar (IPM) da BM indica que apenas o brigadiano Fabiano Francisco Assmann - único que admitiu ter disparado com munição letal - teria cometido o homicídio, mas não de forma proposital.
- Houve dolo eventual, uma vez que ficou configurado que o disparo foi feito em público, tendo assumido o agente o risco pelo resultado do que aconteceu - afirma o capitão Wagner Wasenkeski, do 3º Batalhão de Polícia Militar de Novo Hamburgo, responsável pelo inquérito.
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A Promotoria de São Leopoldo, contudo, adianta que deve encaminhar à Justiça denúncia de homicídio intencional.
- Com certeza a denúncia é de dolo direto. Há prova testemunhal de que mais de um PM atirou na direção da vítima. E, até agora, pelo menos mais um brigadiano deve ser denunciado pelo homicídio - afirma o promotor Sérgio Rodrigues.
Todos os envolvidos estão em liberdade
Outro ponto comum às duas investigações é a existência de indícios de fraude processual e violência policial. Laudos balísticos basearam a conclusão de que os PMs substituíram uma das balas retiradas do corpo de Maicon com o objetivo de confundir a apuração do caso.
"Depois que o PM atira, sentença está dada", afirma comando da BM
Além de Assmann, a Polícia Civil indiciou oito brigadianos e a Brigada Militar, sete. Todos os envolvidos aguardam em liberdade, mas foram afastados das atividades de rua e prestam serviço interno no batalhão.
- Só espero que eles paguem pelo que fizeram, mas temo que o caso fique esquecido e tudo acabe em impunidade - afirma Sara Espindola, mãe de Maicon.