Natural de Porto Alegre, o deputado do Congresso Nacional francês Eduardo Cypel conversou por telefone com Zero Hora sobre o momento tenso vivido pela França. Enquanto falava, teve de interromper a ligação quatro vezes. Por ser estrangeiro, integrante do Partido Socialista (no governo) e já ter sido seu porta-voz, estava, no mesmo instante em que falava, recebendo segurança especial do Ministério do Interior. Na conversa com ZH, ele diz: o momento é histórico, e a França precisa se unir para enfrentar valores contrários à tradição de igualdade, fraternidade e liberdade. Leia trechos da entrevista:
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Qual o significado deste atentado no berço do Iluminismo?
A França está vivendo um momento histórico. Claramente, os ataques terroristas contra o semanário Charlie Hebdo, a policiais e o sequestro pelos mesmos que operaram o atentado é um momento inédito, que a França nunca viveu. A França foi atacada por cidadãos franceses, que nasceram aqui, que foram criados aqui, e com os métodos que são próximos da Al-Qaeda, se é que não foram praticados por pessoas ligadas à Al-Qaeda (no momento da entrevista, a Al-Qaeda não havia assumido a ação), porque parece que eles se reivindicam da Al-Qaeda na Península Arábica. Estamos enfrentando um terrorismo que passa por cidadãos franceses, que se sentem implicados em um terrorismo ideológico. O objetivo é aterrorizar a França e abalar os valores franceses de liberdade, igualdade e fraternidade. Enfim, valores da república francesa. O que eles querem é tocar o coração da república francesa. Por isso, eles atingiram um órgão da imprensa tão importante quanto o Charlie Hebdo, que todos os franceses, de todas as gerações, nos últimos 50 anos, cresceram o lendo e sabendo quem são os cartunistas. Eu mesmo cresci assim. Eles fazem parte da cultura francesa. E no que os terroristas quiseram tocar era nisso, na cultura francesa, republicana, que vem do Iluminismo, que vem da Revolução Francesa, é justamente isso que eles querem atacar.
A França é o país do Iluminismo e da Revolução Francesa, mas também é o país das caminhadas contra o casamento gay e de outras manifestações conservadoras, incluindo a rendição a Hitler. Com o atentado, os terroristas não querem mexer nessa complexidade e aumentar a intolerância e a tensão na sociedade?
Há mais de dois séculos, depois da Revolução Francesa, sempre houve tensões mais ou menos fortes segundo os momentos históricos, sempre houve tensões com forças obscurantistas, forças reacionárias que dividem. A França passou por momentos trágicos, mas soube sempre superá-los. Sempre, ao superá-los, esteve à altura desses valores fundamentais de liberdade, democracia, igualdade e solidariedade, e é isso que estamos vivendo hoje. A reação do povo francês hoje, da sociedade, não só da classe política, não só do presidente, que conseguiu também criar a união nacional, está à altura do momento histórico que vivemos. Estamos justamente erguendo a cabeça para dizer não, para enfrentar esse momento difícil, para justamente preservar o que é essencial, que são esses valores que fazem da França quem é, um país amado no mundo inteiro. A França ainda é uma república onde todos podem viver juntos. São valores que partilhamos também com o Brasil, já que o Brasil se inspirou nesses valores para fundar sua própria república.
Vocês não temem o crescimento da extrema direita xenófoba com esses ataques?
A França tem problemas que precisa enfrentar. Tem uma crise econômica, tem uma crise social e também uma crise de identidade, de um país que está se interrogando para saber como enfrentar a globalização, como se colorar neste mundo novo que vem aparecendo e que provoca medo em boa parte da população, que cria uma angústia legítima. Mas, hoje, temos ameaças novas, que são de outra natureza. São ameaças terroristas claras, uma nova forma de terrorismo, ligada a pessoas que estão aqui na França, que podem ser de uma forma ou outra tocadas pelo islã ou pela religião muçulmana, porque, entre essas pessoas, não há apenas aquelas que nasceram em famílias muçulmanas. Há pessoas convertidas. Hoje, tem mais de mil franceses implicados no que acontece com o jihadismo na Síria, no Iraque, no Estado Islâmico. Mais de mil pessoas estão implicadas nessas redes, para combater lá. Vários estão na linha de frente do Estado Islâmico. Nós temos de enfrentar isso, mas temos de enfrentar isso com os valores da democracia, sem cair nos erros dos Estados Unidos no ataque da Al-Qaeda e que levou o Bush a intervir no Iraque de forma totalmente inadequada e ilegal do ponto de vista internacional.
A intolerância da extrema direita pode se estender a outras minorias?
Claro que há o risco de essas tensões aumentarem e se criarem conflitos interétnicos, religiosos, conflitos que poderiam levar, uma hora ou outra a uma guerra civil. Mas é isso justamente que a França está mostrando que não vai deixar que ocorra. A reação do povo francês neste momento altamente difícil e trágico é de saber se unir em torno dos valores essenciais para a quase totalidade do país, e isso é muito sadio para a França. Precisamos levar tudo isso muito a sério para não deixar nenhum extremista, de um lado ou de outro, por outro caminho que não seja o caminho republicano. A França está mostrando que vai continuar nesse caminho.
Como fazer isso?
Toda a sociedade tem a responsabilidade, todos os segmentos, do governo, da oposição, das comunidades civis. E a França está mostrando que sabe o que é fundamental. No domingo, teremos essa grande demonstração de força da França, dos valores franceses universais. Estão anunciando até que a Angela Merkel estará aqui, para você ter uma ideia do que está ocorrendo na França e na Europa. Essa mobilização popular e democrática será a maior demonstração para nos unir e não nos dividir. É um desafio para toda sociedade.
Os valores iluministas da tradição francesa vão fazer o povo francês se unir?
Claro, já está acontecendo. Sem dúvida, é o que vem se mostrando 48 horas depois do atentado ao Charlie Hebdo. Ninguém vai nos abalar, nenhum terror, nenhum terrorista vai conseguir tocar no que é a França. A França sempre superou esses momentos difíceis, superou o que aconteceu na II Guerra Mundial, em que ela colaborou com os nazistas, e vai superar esse momento trágico. A força da França e da liberdade é um poder universal e está ancorado na cabeça e nos corações franceses.
O que explica que mil franceses se voltaram para o extremismo islâmico?
Somos 67 milhões, e há mil franceses implicados. Sempre teve isso. A direita fascista já teve 10% dos votos nas eleições. Essas forças existem no país, mas são altamente minoritárias. Temos de enfrentar esse momento, analisar esses processos de fanatização e prevenir melhor, lutando, por exemplo, contra a radicalização nas prisões, porque conhecemos os perfis das pessoas infelizmente sensíveis a esses discursos. É uma radicalização de tipo seita, que devemos saber lidar nos antecipando, com as famílias, pela educação.
Em que momento será importante a repressão?
Quando a lei determinar, pela democracia. Há alguns momentos, quando se torna necessário. Hoje, a lei prevê mais alternativas (a França aprovou, em 2014, lei antiterrorismo que dá maiores poderes para controlar o deslocamento de potenciais jihadistas da França para países em conflito).