Uma equipe da Secretaria de Obras de Imbé apara os gramados das calçadas e canteiros da Avenida Santa Rosa, os cortadores fazendo um barulho de serra audível a bem uns cem metros adiante, mas Ivamar Marques não parece prestar atenção. Ele está encurvado em um galpão, empunhando uma lixadeira que contribui com sua peculiar cota de ruído, um som agudo e repetitivo que lembra a versão vitaminada de uma broca de dentista. A tarde é quente, mas uma brisa leve ameniza o calor enquanto a ferramenta passeia demoradamente sobre a superfície lisa da prancha amarelada, produzindo uma névoa de partículas finas de resina e fibra de vidro. Ivamar é surfista, algo que se nota por sua constituição esguia, por sua pele queimada de sol e por aparentar muito menos do que seus 52 anos. No entanto, na temporada em que o litoral se vê tomado de pranchas ao longo da orla, ele raramente pega onda, apesar de estar cercado por um bom número de shapes escorados em cavaletes e nas paredes.
- Surfe, pra mim, agora só mesmo em março - ele comenta, ao abaixar a máscara de proteção azul para avaliar o resultado do trabalho.
Na comunidade unida do surfe, pautada por uma vida em contato com o mar e com a natureza, Ivamar muito bem poderia ser descrito como o xamã, o professor zen, o armeiro do exército do surfe, o cara a quem muitos recorrem para garantir o que de mais básico há para a prática do esporte: a prancha.
Instalado em uma casa de esquina na Avenida Santa Rosa, Ivamar vende materiais ligados aos esporte (em poucas horas, foram três blocos de parafina, a R$ 10 cada), mas sua principal atividade quando o verão se instala em Imbé é restaurar pranchas: consertar fissuras e gretas, dar novo polimento e pintura, recuperar ou refazer quilhas, remendar as pontas ou a rabeta de pranchas mal acondicionadas nos meses de pouca atividade dos surfistas de verão.
- O tipo de trabalho que mais aparece nesta época é mesmo com as quilhas. O cara vem na onda, avança pela praia e às vezes a quilha raspa no chão e quebra - explica.
Ivamar viveu a primeira fase de popularização do surfe no Estado, no fim dos anos 1970, quando tinha seus 20 anos. Não raro embarcava com os amigos em caravanas que ficavam na casa de praia de sua família, em Imbé. Época de praias vazias, excursões com ares mais aventurescos do que hoje, dadas as condições das estradas da época, pranchões de madeira e shapes sintéticos que recém começavam a chegar no Brasil, sempre importadas por alguém que tinha dinheiro para passar um tempo fora.
- Um cara trazia uma prancha comprada na Califórnia e juntava todo mundo em volta para ver. Muitos traziam, cortavam, desmanchavam a prancha para ver como era feita e tentar fazer igual com os materiais daqui - conta.
De lá para cá, as pranchas sintéticas, mais leves, tornaram-se hegemônicas, o que provocou uma transformação também na maneira como o surfe é praticado mundo afora. Só cavalgar a onda já não era mais o grande objetivo, e sim tornar mais sofisticadas as manobras feitas na água. Se isso torna o espetáculo visual do esporte mais atraente, também exige mais das pranchas, sujeitas a mais danos. É reparando esses danos que Ivamar ganha a vida, depois de se mudar para o Imbé há pouco mais de uma década, em um movimento não apenas geográfico, mas de estilo de vida.
Depois de viver a juventude no Rio Grande do Sul, Ivamar passou duas décadas em Mato Grosso, trabalhando com o pai em negócios de mineração e gado. Atividades que até davam grana, mas não davam praia: sem mar à volta, o surfe tornou-se diversão em períodos de férias. A morte do pai, vítima de câncer, e a chegada de Ivamar aos 40 anos foram os episódios que provocaram a mudança de vida. Ele retornou para o Rio Grande do Sul e mudou-se para Imbé. À época tinha o vago projeto de retomar com regularidade o surfe. Ao chegar, percebeu que poderia usar os conhecimentos que havia adquirido consertando barcos em Mato Grosso e aplicá-los aos que já sabia de seu período praticando o surfe.
- Vi que não tinha muita gente que trabalhasse fazendo prancha ou consertando, era algo em que eu podia me estabelecer, uma opção de trabalho. E deu certo.
SEM PATRÃO, MAS COM UM DURO EXPEDIENTE
A rotina de Ivamar, vista de fora, parece a perfeita realização do sonho profissional de um surfista: moradia à beira-mar, trabalho com pranchas, sem patrão e possibilidade de fazer o próprio horário. E ele mesmo diz que é, mas faz uma ressalva: como qualquer ofício que requer uma boa dose de esforço artesanal, lidar com pranchas consome um tempo e um esforço semelhante a qualquer outro emprego com expediente fixo. Talvez até mais.
- Vida alternativa tem essas coisas: conserto prancha e cuido da filha, porque a minha mulher é funcionária pública e passa o dia trabalhando. Mas aqui na oficina eu pego pesado: começo às oito e às vezes vou até as nove da noite - diz.
Esse ritmo de trabalho se estende durante a temporada de verão, na qual as águas se enchem de surfistas que pedem socorro quando algo deu errado em uma manobra ou que simplesmente aparecem para comprar parafina a R$ 10. O restauro de uma prancha envolve, em menor escala, quase todos os processos utilizados na fabricação de uma. Rachaduras, por exemplo, são cobertas com fragmentos de redes de fibra de vidro misturados a resina e depois submetidos a várias etapas de um processo de polimento.
- As pranchas de hoje precisam de menos tempo de lixamento do que as antigas de madeira Ainda assim, são quatro etapas para ficar uniforme.
Cada uma delas tem um nome, e talvez o leitor surfista aí ache essa informação óbvia, mas o repórter aqui é um sedentário urbano que não sabe nadar. Logo, parece importante anotar quando Ivamar explica cada um deles:
- A prancha é feita de uma chapa de poliuretano. Você corta de acordo com a necessidade, o peso, a habilidade do surfista, passa a malha de fibra de vidro com a resina, faz a laminação, passa outra camada para fazer o colt, como chamamos, com a resina em solução de parafina, e por último a camada que dá o brilho, que a gente chama de glass.
No inverno, quando são menos os veranistas, Ivamar trabalha mais projetando e fazendo novas pranchas - para particulares ou para lojas da região - do que consertando as que são trazidas a ele. O ofício é melhor descrito em inglês pelos adeptos do esporte, "shaper" ou "shape designer", mas aqui e ali alguns não praticantes já começam a chamar de "prancheiro". Cada shape leva uma semana para ficar pronta, mas, para ajustar-se ao ritmo da atividade de aplicar resina, esperar secar, lixar, aplicar de novo, Ivamar desenvolveu o hábito de fazer cinco ou seis pranchas simultaneamente. A cada dia, submete todas a uma etapa do processo. Ao fim de uma semana, tem não uma, mas cinco ou seis. Como um bom mestre zen do ofício, ele não tem uma única resposta para a pergunta sobre o que define uma boa prancha.
- Depende de quem vai usar. Ela tem de ser firme, leve e ter bom acabamento, mas todo o resto depende de para que ela vai ser usada. Para quem está aprendendo, é melhor uma prancha grande, porque ela dá mais estabilidade e o cara que está aprendendo precisa em um primeiro momento é andar na água, nem que seja em linha reta, e aprender a descer a onda. Para o surfista profissional, mais experiente, uma prancha mais curta facilita as manobras. Tem de ser bem feita, mas cada prancha é boa para a sua finalidade.
Parte de uma cena pioneira no surfe gaúcho, Ivamar vê hoje o esporte mais disseminado, algo que ele exemplifica com uma amostra empírica: a cada ano vende mais parafinas. Apenas na semana do Natal, foram 200, quando a média semanal costuma ser de 100. Claro que parafinas também podem ser utilizadas para a lubrificação de instrumento de cordas, mas não se tem notícia de um aumento significativo das apresentações de música erudita no litoral, então pode-se aceitar o argumento do artesão.
O que chama a atenção no comportamento seguro de Ivamar à medida que caminha por sua oficina é não a experiência, o que seria óbvio, mas a calma com que realiza suas atividades. Uma tranquilidade que ele identifica como resultado da mudança de vida que o levou a lidar com pranchas no Imbé. Perguntado sobre o balanço da guinada, ele pensa e responde com uma gargalhada:
- Todo mundo trabalha, trabalha, para vir para a praia nas férias ou sonhando se aposentar e vir morar aqui. Já que eu tenho de trabalhar, pelo menos trabalho na praia. Essa foi a grande mudança na minha vida.
carlos.moreira@zerohora.com.br mateus.bruxel@zerohora.com.br
NA BEIRA DA PRAIA | SHAPES QUILHAS E PARAFINA
O XAMÃ DO SURFE
ZH ESTREIA SÉRIE de perfis sobre personagens do litoral. As reportagens serão publicadas aos domingos e quartas-feiras, até o começo de fevereiro
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