Já acossada por intrigas políticas, pressões econômicas e uma inflação cuja disparada se torna indisfarçável, a presidente Cristina Kirchner decidiu se isolar ainda mais após a morte suspeita do procurador federal Alberto Nisman, divulgada no dia 19. Desde o feriado de Natal, ela não mantém agenda pública. Nesta segunda-feira, completam-se 33 dias de reclusão.
Entre analistas políticos, a conclusão é de que a morte de Nisman abriu a maior crise institucional nos 11 anos de governo do casal Kirchner - Cristina sucedeu ao marido, Néstor, morto em 2010. É o selo que irá carimbar à história o segundo mandato dela. O escândalo está posto: o procurador se suicidou ou foi assassinado às vésperas de denunciar Cristina por supostamente tentar encobrir as investigações sobre o atentado terrorista contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), perpetrado em 1994.
Argentinos estão perplexos com morte de promotor que denunciaria Kirchner
Cristina se recolheu à Quinta dos Olivos, a residência presidencial. Não tem despachado na Casa Rosada, diante da Praça de Maio, vigiada por policiais fortemente armados. Mas não há protestos sobre o Caso Nisman no local, palco costumeiro de manifestações populares.
A explicação oficial é de que a mandatária machucou o joelho esquerdo ao sofrer uma queda durante as festas de final de ano e está, por recomendação médica, em uma cadeira de rodas. Adversários insinuam que foi culpa de um certo "líquido deslizante", pois ela teria se excedido nos brindes natalinos com os copiosos vinhos e espumantes argentinos.
Esperava-se que Cristina convocasse uma rede de TV para se pronunciar sobre a morte do procurador (cargo equivalente ao do Ministério Público Federal do Brasil). Mas ela preferiu, ainda no dia 19, postar uma carta aberta no Facebook, sendo no mínimo insensível ao luto da família Nisman. Pondo seus interesses acima da dor alheia, atribuiu o episódio a mais uma tentativa de atingir o seu governo. No dia 22, como se acreditasse que todos os 40 milhões de argentinos estão conectados ao Facebook, voltou atrás da posição inicial. Admitiu que não tinha provas, mas "tampouco dúvidas" sobre o possível homicídio.
No isolamento de Olivos, no pior momento do kirchnerismo, Cristina tem se aconselhado somente com o círculo íntimo. Um dos interlocutores é o filho, Máximo, a quem confiou a chefia do grupo La Cámpora (referência ao ex-presidente Héctor Cámpora, amigo de Juan Domingo Perón). Criada em 2006, La Cámpora conquistou aliados entre os jovens distribuindo vagas no serviço público.
Jornalista que noticiou o caso fugiu para Israel
O repórter que revelou a morte do procurador antes da confirmação oficial, Damián Pachter, do The Buenos Aires Herald, deixou a Argentina no sábado, após relatar que estava sendo perseguido por desconhecidos, possivelmente do serviço de inteligência. Pachter, que é judeu, refugiou-se em Tel Aviv, em Israel, de onde publicou um texto no site do jornal Haaretz, contando detalhes da fuga. "A Argentina se tornou um lugar escuro liderado por um sistema político corrupto. Ainda não me dei conta de tudo que aconteceu comigo nas últimas 48 horas. Nunca imaginei que meu retorno para Israel seria assim", escreveu.
No domingo, as redes de TV argentinas repercutiram a decisão do jornalista. Autoridades queriam interrogá-lo sobre como soubera da morte de Nisman antes do comunicado oficial. Ao portal Infobae, Pachter disse ser o segundo protagonista do caso que está em apuros. Primeiro, foi o especialista em informática Diego Lagomarsino, que emprestou a pistola ao procurador. Durante a semana, Diego foi considerado foragido por algumas horas, mas estava escondido na casa de amigos. Ao se apresentar, foi proibido de deixar o país e está sob custódia policial.
O epicentro das atuais incomodações de Cristina está na Rua Pasteur, no bairro Onze, onde funcionava a sede da Amia, prédio destroçado pelas bombas de 1994. O lugar se transformou em memorial do maior atentado recente do país. Na fachada, está a lista com os nomes dos 85 mortos. Uma placa expõe o luto: "Recordar a dor que não cessa".
Um dos moradores mais antigos do bairro judeu, Isaac Hambra, 84 anos, passa diante dos escombros da Amia quando vai para casa. Ele acompanhava as apurações do procurador. Tinha esperança de que pudessem apontar os responsáveis pela tragédia. Ao saber da morte de Nisman, concluiu que os argentinos estavam diante de mais um trauma:
- Foi morto. Basta ter dois centímetros de cérebro para ver que não foi suicídio.