O atentado que atingiu o coração da França na geografia e na alma tende a acirrar tensões latentes e respinga em um dos escritores mais badalados do momento: Michel Houellebecq.
Submissão, novo romance de Houellebecq, teve lançamento no Brasil antecipado para este primeiro semestre no mesmo dia em que o próprio autor cancelou a promoção da obra. A editora Alfaguara, desde ontem, apressa-se na preparação da edição brasileira.
Na França, o livro foi lançado no mesmo dia em que houve o atentado. Detalhe: a capa do semanário Charlie Hebdo, alvo do ataque, trazia chamada sobre a obra e uma caricatura de Houellebecq. No romance, o autor especula sobre o país em 2022, governado por um presidente muçulmano e cedendo gradualmente à lei islâmica.
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O coordenador de imprensa da editora, Felipe Maciel, confirma que os acontecimentos precipitaram o lançamento. Define o livro como "premonitório". E cita texto escrito no jornal Le Monde pelo francês Emmanuel Carrère comparando Submissão a 1984, de George Orwell, e a Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley: "Se há qualquer um hoje em dia, não só na literatura francesa, mas na mundial, que reflita sobre a enorme mutação em curso que todos nós sentimos, e que não sabemos como analisar, esse escritor é Houellebecq".
O novo mundo a que Carrère se refere deve ser influenciado pelo ataque ao Charlie Hebdo, no qual, entre 12 vítimas, morreram quatro cartunistas reconhecidos como referências satíricas.
- Em uma Europa que já vivia sua crise, o antiislamismo vai crescer, e o Charlie Hebdo e o livro fazem parte do conjunto de fatores que elevam a tensão. O temor vai aumentar, mas não creio que haja ações em cadeia depois do atentado - diz a historiadora Analúcia Danilevicz Pereira, professora de Relações Internacionais na UFRGS.
Especialista em inteligência, Andre Luís Woloszyn comenta:
- Não acredito que será um novo Salman Rushdie. Seus personagens não ofendem diretamente o Islã, embora haja críticas indiretas à poligamia. Mas a hipótese de ser condenado pelos extremistas não pode ser descartada.
Uma das vítimas, Bernard Maris resenhou livro no Hebdo
Uma das vítimas do atentado contra o Charlie Hebdo, o economista e integrante da equipe da revista Bernard Maris foi o autor da reportagem de capa sobre o livro Submissão, de Michel Houellebecq.
De início, Maris resume brevemente o enredo do romance. O ano é 2022, e a França está à deriva depois de dois mandatos catastróficos do presidente socialista François Hollande. O hipotético partido da Irmandade Muçulmana emerge, lado a lado com o Partido Socialista. A Frente Nacional (de extremadireita) está prestes a derrotá-los. O PS e a Irmandade Muçulmana, aliados, chegam ao poder, e o PS deixa ao partido islâmico, além da presidência da República, o Ministério da Educação Nacional.
O presidente Mohammed Ben Abbes propõe uma "sharia (lei islâmica) moderada, levemente reacionária com um retorno à família e à mulher dedicada ao lar e uma privatização do ensino que convém perfeitamente a todo mundo". Em troca, oferece à França uma visão de futuro: a restauração do Império Romano em versão atualizada, da Bretanha ao Deserto do Saara, passando por Itália, Turquia, Grécia e Espanha.
Como resultado, os países árabes francófonos, o Egito e a Líbia aderem à União Europeia, e a França recupera seu papel dominante. Fim da história.
Para Maris, o livro é "uma projeção futurista extraordinária e crível, como em todos os romances precedentes (de Houellebecq)". Também é "o desdobramento de uma questão política maior: a identidade, a pátria, a nação (...) podem existir sem transcendência?". No final do texto, elogiando o livro como "romance magnífico" e "cartada de mestre", o jornalista pergunta: "E a zombaria implícita do Islã?" E conclui: "Ela não existe. O Islã aceita o mundo como ele é: toda a diferença do catolicismo, que não pode fazer outra coisa a não ser engendrar frustração perpétua".
Vídeo mostra terroristas executando policial na saída da sede:
Atentado em Paris
Léo Gerchmann: novo livro de Houellebecq tem potencial para acirrar tensões na França
Romance que especula sobre país em 2022, governado por um presidente muçulmano e cedendo gradualmente à lei islâmica, foi lançado no mesmo dia do ataque a Charlie Hebdo
Léo Gerchmann
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