Autor de livros sobre as banlieues (subúrbios das grandes cidades francesas onde se concentram imigrantes), sobre o Oriente Médio e o Holocausto, entre outras obras, o historiador, jornalista e escritor francês Dominique Vidal é um observador privilegiado dos acontecimentos dos últimos dias no país. Para ele, a França está doente, mas não em razão dos imigrantes ou do islamismo, e sim da crescente exclusão econômica e social.
Por telefone, de Paris, Vidal conversou com Zero Hora na manhã deste sábado. A seguir, uma síntese:
Como o senhor define o ataque à revista Charlie Hebdo e seus desdobramentos?
É a mais grave ação terrorista perpetrada na França no último meio século. É preciso remontar à Guerra da Argélia para se encontrar uma ação tão grave como essa, em particular contra jornais e jornalistas. Portanto, evidentemente, é um acontecimento importante e grave.
O atentado contra o jornal foi um ataque à liberdade de expressão ou um crime de ódio como outros tantos que têm ocorrido na França e na Europa?
A partir do momento em que tem como alvo um jornal e é lançado contra a sua própria redação, é, evidentemente, um ataque à liberdade de expressão. A maneira como o atentado foi cometido e a fria determinação dos dois atiradores confirmam que se trata também de um crime de ódio, sem nenhuma dúvida.
O senhor é Charlie?
Eu diria sim e não. Sim, por razões evidentes, ou seja, o atentado contra Charlie Hebdo se tornou um símbolo do ataque à liberdade de expressão. É por isso que muitas pessoas dizem hoje "Eu sou Charlie" na França e no mundo. E diria também que não na medida em que esse horrível atentado não pode barrar o debate com Charlie e com sua redação, notadamente sobre a maneira de tratar a religião em geral e a religião muçulmana em particular. Portanto, eu diria sim e não.
O problema é o Islã?
Certamente não. O que foi perpetrado na quarta-feira, mas também na sexta-feira, com a tomada de reféns na loja kosher em Porte de Vincennes, em Paris, é a ação de uma minoria ínfima. Há dezenas, talvez centenas de jovens que poderiam cair, escorregar para o horror. Eu lhe faço uma pergunta: diante do pesadelo inominável cometido pelo norueguês Breivik (Anders Breivik, terrorista que atacou um acampamento de jovens em 22 de julho de 2011, em Oslo), com 72 mortos no espaço de alguns minutos, você diria que o problema é o cristianismo ou o catolicismo? Certamente não.
O senhor estará na manifestação deste domingo em Paris?
Certamente. Independentemente da forma da manifestação, ou mesmo de sua institucionalização com a presença de chefes de Estado, seria impensável não tomar parte.
Qual é a sua opinião sobre teses como as defendidas por intelectuais franceses como Éric Zemmour que propõem seriamente deportação de imigrantes como medidas políticas?
Penso que são teses e intelectuais absolutamente ultrajantes. Falar de deportação de muçulmanos da França, que foi a questão tratada numa entrevista a um jornal espanhol, é cometer um crime virtual. Lembro que o III Reich, antes de tentar exterminar os judeus, pretendeu deportá-los. Penso que nomes como Zemmour, o escritor Houellebecq (Michel Houellebecq) e Renaud Camus são os batalhões percursores da Frente Nacional (partido francês de extrema-direita). Isso quer dizer que a islamofobia é um instrumento muito importante da direita, na França e também na Europa, para chegar ao poder. Estamos numa situação extremamente inquietante desse ponto de vista, onde você pode encontrar o discurso e a propaganda da extrema-direita do início do século 20 reproduzido de forma precisa, com a diferença de que agora os muçulmanos ocupam o lugar dos judeus. Isso é muito preocupante.
A "união sagrada" sob o presidente François Hollande e o ex-presidente Nicolas Sarkozy pode ser a resposta para a crise?
"União sagrada" é uma expressão muito popular na França. Assim foi chamada a frente de todas as tendências políticas e religiosas no início da I Guerra Mundial, depois do assassinato de Jean Jaurés (socialista que se opunha à participação francesa no conflito e foi morto por um nacionalista em 31 de julho de 1914, antes da declaração de guerra). O que é importante não é que façam parte desse movimento os partidos políticos, porque eles são muito desacreditados, especialmente aqueles representados pelo presidente Hollande (o Partido Socialista) e pelo ex-presidente Sarkozy (a União por um Movimento Popular). O que é importante é a união pela base do conjunto dos franceses e das francesas que querem defender a liberdade e a fraternidade, que são os valores representados pela república francesa - é a união popular, se você quiser.
A França está doente? Em caso afirmativo, qual é a doença?
Penso que é necessário compreender a dialética complicada da situação. Os atiradores não são pessoas comuns - são parte de uma ínfima minoria. Mas, ao mesmo tempo, é preciso considerar que há um terreno para esse terrorismo. E a doença da França está relacionada a esse terreno. É a doença da discriminação, do racismo, da islamofobia, do antissemitismo. Há na França uma parte da população que foi precipitada na pobreza e na miséria, que vive em guetos, que são as grandes cidades das banlieues (subúrbios). É evidente que há situações de mal-estar econômico e social, mas também moral, que servem ao terror e ao terrorismo. Desse ponto de vista, não se deve negligenciar os fatos que ocorreram no mundo nos últimos 20 anos. O pesquisador francês Gilbert Achcar (historiador e professor da Universidade de Londres) usa o termo "choque de barbarismos". Isso quer dizer que há uma parte da população que vê a tortura perpetrada em Abu Ghraib e, depois, em Guantánamo pelos americanos e que vê, de outro lado, o Estado Islâmico (EI). Há uma espécie de pingue-pongue entre esses dois tipos de barbárie. Veja o que acontece na Síria, com mais de 200 mil mortos, a maior parte de muçulmanos, com certeza. Essa matança generalizada certamente marcou esses jovens desesperados. E depois se vê, no verão passado, o ataque contra a Faixa de Gaza, com mais de 2 mil mortos, entre eles mais de 500 crianças. Tudo isso contribui para criar esse terror em meio ao qual o terrorismo pode fazer recrutamentos. Há, portanto, a necessidade de tratar essa doença.
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Qual seria a possível solução política para esse quadro traçado pelo senhor?
Penso que há, em parte, a resposta da repressão. É importante que se reforce a polícia para perseguir e prender os terroristas que cometeram esses atentados e outros que possam vir a fazê-lo. Hoje, há uma declaração da Al-Qaeda no Iêmen que reivindica essas ações, felicita os perpetradores e anuncia outras. Então, há, certamente, uma resposta policial a essa situação. Mas a resposta principal, na minha opinião, na França e na Europa, deve ser social, contra a indiferença em relação a grande parte da população, notadamente os jovens. Há também, em escala mundial, uma reflexão a fazer sobre a incapacidade da guerra de resolver os problemas. Tudo indica que, com a guerra, não se ganha nada. A guerra agrava os problemas. Há necessidade de um outro tipo de abordagem dos problemas, no Oriente Médio, certamente, mas também na África. Eu diria que a resposta não poderá ser somente militar, que é preciso ser uma resposta econômica, social e política.