Guilherme e Gustavo ensaiam os primeiros passos. Donos de um vocabulário muito próprio e típico da idade, eles misturam gestos a uma conversa que só a "mamama" entende. Orgulhosa e emocionada, Elisiane San Martin - a funcionária pública de Santa Vitória do Palmar, que há um ano comoveu o Estado depois de peregrinar por vaga no sistema de saúde pública e ter de viajar mais de 500 quilômetros para dar à luz filhos gêmeos - reapresenta a sua família. Desta vez, como retrato de uma história feliz.
Os preparativos para a festa de um aninho, no próximo final de semana, trazem de volta as lembranças adormecidas no dia a dia. A cada convite preenchido, Elisiane dá uma olhada para os filhos, enche os olhos de lágrimas e pensa no quanto a vida mudou. Idênticos, os gêmeos se diferenciam por um único detalhe na sobrancelha de Gustavo. Quem vê, assim cheios de saúde, custa a acreditar que antes mesmo de nascer as chances de sobrevivência eram mínimas.
Grávida de oito meses, Elisiane apresentou um quadro de infecção e teve de esperar por dois dias até que fossem liberadas as duas vagas em UTIs neonatais conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) que precisava para ter os seus bebês. Ela foi transferida da Santa Casa de Santa Vitória até Novo Hamburgo em uma ambulância sem o equipamento adequado para o transporte de emergência. E, ao chegar para o parto, ainda precisou ouvir do médico que tinha de estar ciente que os três, mãe e bebês, corriam risco de morte. O "sim", em resposta ao especialista, foi a sua última palavra antes de entrar em coma. Apagou sem saber se os filhos haviam sobrevivido.
- Quando acordei soube que muita gente que eu nem conhecia orava por mim, fazia vigília na porta do hospital, ajudava com a doação de peças para o enxoval, havia feito promessa. Eu lembro de tudo isso e vejo na nossa história uma vitória da esperança. Mas ao mesmo tempo é muito triste saber que a gente precisa contar muito mais com a sorte e com a fé do que com a boa vontade dos nossos governantes - diz.
Elisiane voltou para casa 25 dias após a internação. Ela e os gêmeos foram recebidos com festa e carreata pelas principais ruas de Santa Vitória do Palmar. Hoje, os meninos são as "joias raras" da professora Joseli Leston, com quem passam o dia numa escolinha no centro da cidade. Elisiane San Martin reassumiu o trabalho como funcionária da prefeitura e recebe a visita do marido e pai dos meninos, o montador de móveis Alex Naparo, 33 anos, a cada 40 dias.
É essa a única parte que falta para que a família se complete - Alex mora em Florianópolis, onde trabalha desde que os dois casaram, e agora tenta transferência para o sul do Estado, para viver de perto a mesma emoção de Elisiane: ver os filhos crescendo com saúde.
Veja depoimento da mãe:
Em um ano, pouca coisa mudou
O drama vivido por Elisiane, há um ano, de imediato causou alvoroço no governo do Estado. Com a divulgação da escassez de leito em UTIs neonatais, houve muita promessa de ampliação das vagas. Porém, desde então, pouca coisa mudou. As vagas disponibilizadas hoje são as mesmas 370 de um ano atrás - enquanto que o Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) considera que para estancar o problema sejam necessários pelo menos mais 32 leitos.
No meio do caminho, houve ainda um grande tropeço. Com a divulgação da história da funcionária pública veio à tona a situação do Hospital de Caridade de Canguçu, onde havia uma unidade pronta para funcionar, mas fechada porque esperava há quase um ano pelo credenciamento no Ministério da Saúde.
Na ânsia de resolver a questão, a UTI neonatal que disponibilizava 10 leitos via SUS, foi inaugurada poucos dias depois - mas interditada com apenas três meses de funcionamento porque o número de médicos era insuficiente para atender a demanda.
As portas da UTI neonatal do Hospital de Caridade de Canguçu foram fechadas pela Vigilância Sanitária no final de fevereiro e até agora não há informações sobre a reabertura. A Secretaria Estadual de Saúde (SES) diz que só irá liberar o atendimento quando a direção da casa de saúde comprovar a presença de quadro clínico adequado, o que ainda não teria ocorrido.
Quanto à ampliação do número de leitos, existe a promessa de inauguração de 10 novas vagas de UTI neonatal e outras 10 de UTI pediátrica no Hospital Universitário São Francisco de Paula, em Pelotas, até o final do ano. Em Rio Grande, a SES garante que haverá a abertura de mais 10 leitos de UTI pediátrica no hospital da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), porém não informa a data.
Entrevista - Elisiane San Martin, mãe dos gêmeos
"Eu estou nessa luta também pelas pessoas que ainda não tiveram o seu final feliz"
Elisiane San Martin, 35 anos, guarda todas as fotografias, reportagens de jornais e gravações de tv que contam a sua história. A ideia é montar um álbum para que Guilherme e Gustavo saibam o quanto os seus primeiros dias de vida causaram comoção em todo o Estado. Ela também pensa em escrever em um blog e abrir espaço para que outras mães também contem as suas histórias, com ou sem final feliz.
Zero Hora - O que mudou na família San Martin nesse um ano?
Elisiane San Martin - Tudo mudou. Agora a gente dá muito mais valor à vida, aproveita cada momento com toda a intensidade que pode. Depois de escutar do médico que poderíamos morrer, eu e os meus filhos, só posso ter a certeza que ganhei uma segunda chance. Somos muito felizes. Mas ainda existem resquícios do que aconteceu, a Elisiane de antes era muito mais segura, hoje eu tenho medo que algo aconteça com eles. Somos todos muito frágeis diante desse serviço de saúde que é oferecido à população.
Zero Hora - E quando você escuta falar em casos semelhantes ao seu. Lembra de toda a história de novo?
Elisiane San Martin - Elisiane - Eu me sinto indignada, me sinto impotente quando fico sabendo de outros casos de mães que correm o risco de perder os filhos por falta de atendimento adequado, por falta de vaga. Como o meu caso veio à tona, eu sinto que tenho uma obrigação em fazer campanha pela vida e para quem já estiver fazendo essa campanha eu deixo um recado: usem a minha imagem, usem a minha voz, usem a minha história - eu estou nessa luta também pelas pessoas que ainda não tiveram o seu final feliz.
Vitória da fé
Mãe que fez peregrinação para dar à luz gêmeos comemora um ano dos filhos
Funcionária pública Elisiane San Martin, 35 anos, viajou mais de 500 quilômetros em busca de leito
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