Não importa se o Juventude retomará ou não a sua escalada de vida e de divisão neste domingo, após uma década na primeira seguida de um período desgraçado ao ponto de remetê-lo ao anonimato da Série D, a última do futebol brasileiro. Neste domingo começa o mata-mata com o Metropolitano (SC). Se passar, o primeiro degrau estará vencido, com o retorno à Série C. É bom para o futebol gaúcho, que padece enquanto rincões menos votados ganham notoriedade no país. Mas, como eu disse, não importa o resultado para o que vou dizer. Há, na experiência deste ano do Juventude, uma realidade que merece reflexão. E ela tem nome e sobrenome: Luiz Carlos Cirne Lima de Lorenzi, o Lisca.
Trata-se de um técnico prodígio, se é que existem técnicos prodígios. Se não existem, acabo de inventá-los. Lisca Tem só 41 anos, mas milita nas casamatas desde os 24, quando surgiu na base do Inter, em 1996. Pelas suas mãos, moldaram-se Daniel Carvalho, Rochemback, Sobis, Nilmar, Pato. A transformação na revelação de talentos no Beira-Rio passa muito por ele, no campo, e por Fernando Carvalho, na direção do futebol. Os dois mudaram a mentalidade do processo, e daí criou-se o ciclo caseiro que fundamentou o reerguimento do clube como instituição, cuja ponta mais visível do iceberg foi a saga de Yokohama. Pois agora, o Jaconi virou um criatório tão profícuo que abastecer Juventude e Grêmio ao mesmo tempo. Nada é por acaso, como se vê.
Lisca é um personagem do futebol gaúcho. De família rica e tradicional, saiu de casa cedo para encontrar guarida em ambiente oposto ao seu, ao lado de gente humilde e sem o privilégio da oportunidade. Há meninos candidatos a craque que só têm duas opções: a fama ou a morte nos descaminhos da exclusão. Nada indicava que Lisca prosperasse, mas deu-se exatamente o contrário. O caminho natural era receber chance em um clube grande - e voar. Mas a cada vez que ele faz um trabalho como este, no Juventude - sem dinheiro para contratar, tirando leite de pedra, se virando com o que tem - há sempre um "mas" cruel após a vírgula.
Nos bastidores, ele é bom, brilhante, acima da média, até de gênio já ouvi o chamarem. Mas - sempre o mas - é "louco". Sanguíneo demais, exagerado demais, sem a medida do que dizer e o que não dizer. Uma bomba capaz de explodir a qualquer momento, capaz de subir no alambrado para reger a torcida do Juventude ao eliminar o Grêmio do Gauchão deste ano, nos pênaltis. Em resumo: não tem a postura que se exige de um treinador. É o que dizem de Lisca, e ele sabe disso. Já conversamos a respeito.
Duas questões. A primeira: qual é a medida da loucura para técnico de futebol?
Mourinho é uma metralhadora giratória. Brigou com Casillas no Real Madrid, prova de que não é muito certo. Perdeu para Vicente del Bosque o título de melhor técnico do mundo e, sem elegância ou provas, acusou a eleição de fraude. O delegado Antônio Lopes invadiu o campo e deu voz de prisão ao árbitro, com a sobriedade de um fã do Motorhead. Jair Picerni voou (literalmente) no pescoço de um repórter de TV, exibindo a tolerância de um chefe de organizada. No Palmeiras, Felipão atirou a bola no jogador do Vasco que ia cobrar lateral, na final de 1998, mostrando fair play de decisão do citadino de Várzea. Já vi Abel Braga se irritar (com razão) ao ouvir ofensas de corneteiros chatos no alambrado, chamando-os para a briga (aí perdeu a razão) com a linguagem reverencial própria da borracharia.
Já estamos vendo em Lisca a reencarnação do Anjo Gabriel, certo? É a velha mania de criar padrões de comportamento e querer enquadrar neles a complexidade humana. Pior: carimbar alguém com um rótulo, qualquer rótulo, e reforçá-lo sob qualquer hipótese até o limite do bullying.
A outra questão, esta decisiva, sobre a loucura do treinador do Juventude: mais louco é quem me diz que não é feliz.