No dia em que Argel tomou o ônibus em Santa Rosa para tentar a vida no Inter aconteceu uma conjunção de coincidências. Poderia ter viajado a Porto Alegre no flamante Opala amarelo do pai, Argemiro. Mas se arvorou à Capital de coletivo, em mais de seis horas de estrada. Outros dois garotos estavam no ônibus. Com os mesmos 16 anos, Marcelo Baron sonhava em ser centroavante. Cristian "Santa Rosa" queria ser goleiro - e os três se conheciam apenas de vista na cidade. Sem nenhuma combinação, eles descobriram entre as poltronas que tinham o mesmo destino do Beira-Rio.
- Ninguem sabia do outro, foi surpresa saber que a gente buscava o mesmo objetivo - recorda Baron, 42 anos, hoje dono de restaurante em Santa Rosa e agropecuarista em Goiás.
Os três passaram no teste aplicado no final de 1989 pelo técnico Abílio dos Reis, já em seus últimos momentos de 30 anos de Inter. Mas só Argel e Marcelo Baron fizeram carreira.
Agora, 26 anos após daquele começo juvenil, Argel já venceu como zagueiro dois Gre-Nais, empatou três e perdeu um, jogou no Japão, Santos, Porto, Palmeiras e Benfica e encara o primeiro clássico como técnico do time que o acolheu quando adolescente. Aos 41 anos, é seu maior desafio em oito anos como treinador.
Na época da aprovação no teste, ninguém mais do que o mecânico Argemiro se sentiu tão realizado. Ele se gabava das qualidades do filho nas rodas dos amigos e talvez visse nele a imagem de um novo Taffarel. Natural da vizinha Crissiumal, o então goleiro do Inter fora adotado como heroi em Santa Rosa antes mesmo de sua primeira Copa, a de 1990.
Argel em jogo pela base do Inter
Foto: Arquivo Pessoal
Não à toa o pai coruja arrostou na cidade: o filho um dia vestiria a camiseta da Seleção Brasileira.
Havia no sucesso do garoto um pequeno inconveniente, que logo se dissipou. Argemiro queria mesmo que o menino seguisse carreira no Olímpico. Gremistão apaixonado, seis meses antes da aprovação no Inter ele já havia apresentado o garoto no Grêmio. E ainda providenciou toda uma preparação em treinos técnico e tático e musculação em academia. O filho tinha de vingar no seu Grêmio.
Apesar do vigor e do condicionamento particular, o garoto não foi aprovado.
- Eu jogava com Argel no timezinho da cidade. Seu Fucks estava nuito entusiasmado, levaria o filho para teste no Olímpico e pediu à minha família liberação para que eu fosse junto à Capital. Meu pai não me deixou viajar - conta o corretor de imóveis Giovani Almeida, o Pire.
Quando Argemiro e o filho de 16 anos retornaram de Porto Alegre, o abalo maior pareceu cair sobre o ombro do pai. Mas os Fucks eram obstinados. Argel cresceu assim.
Desde criança ele vivia em dois campos a 50 metros de sua casa no bairro Jardim Petrópolis. Foi onde começou jogando pelo Guarani, um time de guris. À beira do campo, o inquieto Argemiro ditava típicas palavras de incentivo: "Vamos, filho, chega nele!"
Mecânico de manutenção do antigo frigorífico Prenda, hoje Alibem, seu Fucks gozava de alguma reputação na cidade, seja pelo lado profissionali ou pelo temperamento forte.
Acabou o filho trabalhando na mesma empresa, uma potência na Região da Produção. Com apenas 15 anos, Argel deu expediente no almoxarifado e carregou nas costas sacas de 50 quilos de sal. O emprego só não era de todo ruim porque ali estava a chance de jogar pelo time juvenil do frigorífico. Quer dizer, começou como reserva do zagueiro Gerson Soares, o Caniggia.
Gelson Soares, ex-companheiro de time em Santa Rosa, hoje é taxista
Foto: Félix Zucco/Agência RBS
- Ele era o meu banco, mas também jogamos juntos na zaga. A gente era doente de atirar pedra - conta Soares, hoje taxista em Santa Rosa, usando expressão local para se referir a exageros e arrebatamentos.
Há outra imagem da adolescência de Argel. Sobre uma bicicleta BMX de bicicross, ele enfrentava as rampas mais altas do bairro e zunia reto nas curvas. Queria vencer sempre, com um destemor que impressionava os adultos.
A maior derrota do menino Fucks foi a perda da irmã. Aos 16 anos, dois a mais do que o mano, Andreia sofreu acidente de carro e não resistiu. A comoção foi grande na cidade e calou fundo no rapaz à procura de afirmação. Restou o irmão mais novo, Alexandre, então com quatro anos.
Ex-professor de Argel nas aulas de Educação Física da escola Machado de Assis, Vítor de Abreu acredita que seu antigo aluno é a imagem da vitalidade do noroeste do Estado, que faz fronteira com a Argentina.
- Eles falam em jugar a la muerte. A gente é um pouco disso. E ele era assim, no torneio interno do frigorífico ou no juvenil do Dínamo, com liderança, mas esquentado. Eu via isso quando ele jogava o velho futebol de salão, com a bola pesada - afirma o professor. - É bom lembrar que o nome dele é Argélico, hein.
Campo no bairro Jardim Petrópolis, onde Argel começou a jogar
Foto: Félix Zucco/Agência RBS
É Argélico mesmo. Como era difícil chamá-lo em casa pelo nome de batismo, acabou pegando a abreviatura mais sonora.
O início no Inter foi em companhia do conterrâneo centroavante Marcelo Baron, desde o infantojuvenil em 1990. Eventualmente se separaram durante as convocações de Argel às seleções de base, ano a ano, a partir dos 17. A dupla subiu em 1993, e o zagueiro logo ganhou posição no time do técnico Antônio Lopes.
Baron não se firmou na equipe, mas ambos seguiram no Inter da primeira metade dos anos 1990, com os técnicos Ênio Andrade, Paulo Roberto Falcão, de novo Lopes, Procópio Cardoso e Cláudio Duarte, com quem levantaram o Gauchão de 1994. Colocaram as faixas ao lado de Luís Carlos Winck, Luís Fernando, Caíco, Leandro Machado, Nando e Dinei.
Aconteceu em maio de 1995 a segunda derrota de Argel. O casal Marlene e Argemiro foi ao baile do Dia das Mães em um clube comunitário perto de casa em Santa Rosa. Na saída, à primeira hora de segunda-feira, Argemiro se envolveu em uma rixa e foi alvejado na barriga com três tiros de revólver calibre 38. Chegou sem vida ao hospital da Caridade. Tinha 48 anos.
Avisado em Porto Alegre, Argel desesperou-se. Conduzido às pressas, chegou pela manhã à cidade para confortar a mãe e o irmão Alexandre, agora com 12 anos. Viajou com a perna engessada. Havia sofrido na semana anterior uma artroscopia no joelho.
- Argemiro era o Argel de hoje, era a mesma coisa, o finado Fucks - conta Pire.
Vítor de Abreu foi professor de educação física do técnico colorado
Foto: Félix Zucco/Agência RBS
Desde então, ainda noivo, o zagueiro assumiu ao natural a condição de chefe do clã dos Fucks, aos 20 anos. Começou por desencorajar o mano Alexandre a seguir carreira no futebol. Agiu como o velho Argemiro. Ele queria que o irmão estudasse. Só cuidasse dos estudos.
Mas Alexandre e dona Marlene se mudaram para Porto Alegre assim que Argel se transferiu para o Tokio Verdy, em 1996. E o mano foi desfilar suas qualidades de volante na base do Inter. Quando recebeu a notícia da dispensa no Beira-Rio, Argel jogava no Santos. Não demonstrou a menor contrariedade. Pelo telefone, repetiu a frase que dizia desde a morte de Argemiro:
- Já tinha te falado, vá estudar.
Argel bancou a faculdade e Alexandre se formou em Medicina na Ulbra. É cardiologista e diretor do Hospital Regional do Vale do Rio Pardo. O destino dos filhos talvez seja bem maior do que o velho Argemiro sonhava.
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