Este texto faz parte da cobertura da Copa do Mundo. A seção 'A Copa da minha vida' é publicada diariamente no caderno digital sobre o Mundial do Catar.
Vamos alinhar as expectativas. Se você espera ler um relato emocionante sobre alguma Copa do passado, pode pendurar as chuteiras. Entendo quase nada de futebol, e minhas memórias futebolísticas são mínimas.
Para não dizer que estou imune aos jogos do Catar, no início até escrevi uma coluna sobre o menino pombo no Diário Gaúcho, e também fiquei arrasada com a vitória da Croácia. Não sobrou unha nem cutícula depois daqueles pênaltis. O que vou roer a partir de agora? Explico: o Brasil saiu da Copa, mas eu ainda tenho muita ansiedade pra administrar.
Atualmente, só chuto tijolo a gol. Meu gramado é pura caliça. Ando monotemática. Isso acontece quando a gente decide construir uma casa. Realmente eu não sei como o Catar conseguiu fazer a tempo uma cidade inteira pra essa Copa, fora os diversos estádios.
Estamos terminando uma única casa, e ela já consumiu completamente os nossos recursos. Sem petróleo, sem patrocinadores. Só na raça e na coragem. Seguir acompanhando os jogos até seria uma boa distração, mas já estamos nos 45 do segundo tempo. Ou vai ou vai.
Se tem algo que vou lembrar pra sempre é essa coincidência. O mês da Copa é o último mês da obra, e ninguém está 100% preparado pra esse tipo de evento. Definitivamente é a Copa do Catar. Catar mais dinheiro pra comprar o que ainda falta. Catar um remedinho pra dormir e desligar da obra. Catar folhas de cheque! Descobrimos que essa forma ancestral de pagamento segue viva entre fornecedores do litoral gaúcho.
Confesso que eu não confio muito na minha memória. Então vai ser bom ter esse marco no tempo: 2022, o ano da Copa do Catar e da obra. E um marco que não me custou nada, que alívio. Se tem marco, tem porta, fechadura e… chave da casa nova! Eu sonho com isso mais do que o Tite sonhava com a taça.
Vejo o pessoal torcendo por seus palpites no bolão. Por mais que contem com a sorte, os resultados dos jogos não dependem do apostador. Quem constrói vive monitorando placar paralelo, dentro de um mundinho cercado por tapumes, onde a sorte também é bem-vinda.
Depois de infinitas compras online, achamos que tínhamos caído no Golpe da Loja Fake de uma grande marca: 10 a 0 ao tanque, já sem esperanças de chegar. Ronaldo Fenômeno se esbaldando em Doha com a carne folheada a ouro do Salt Bae, a gente economizando até no caldo Knorr. Tomar um prejuízo agora seria pior que gol contra na final. Atualizando o placar: a nota fiscal chegou, o tanque ainda não.
Na Copa, o VAR é o dono da verdade. Numa obra, as decisões são em grupo. Tudo é negociado, ideias novas surgem a cada momento. Alguns improvisos são permitidos pela arbitragem, e o perigo nem é cartão amarelo ou vermelho. É o cartão de crédito estourar. Porque nenhum planejamento está preparado para as surpresas de uma obra. Falta fôlego em campo. É tipo o técnico ensaiar todas as jogadas possíveis, achar que pensou em tudo, e só na hora H descobre como vai ser.
A Copa da minha vida não é do passado e nem a do presente, mas tem tudo pra ser a próxima. Daqui a quatro anos, imagino todas as dívidas pagas e os ambientes prontos. Leva tempo pra uma casa ganhar personalidade e criar memória afetiva. Encher de móveis é uma coisa. Cada objeto encontrar seu lugar é diferente.
Já está marcado no calendário mundial que a Copa de 2026 será em 3 países diferentes: EUA, Canadá e México. Ah se a vida real fosse tão regrada. Por onde andaremos? Ainda divididos entre praia e cidade? Já em definitivo no litoral? E meus filhos, em qual CEP estarão?
Seria lindo demais o Brasil ganhar o Hexa, mas infelizmente não deu. A Copa do Catar tinha tudo pra se igualar ao tamanho da nossa comemoração particular. Só quem já construiu sabe a vitória que é finalizar uma obra e estar satisfeito com o resultado.
Nossa torcida familiar seguirá indo à loucura. Se não deu pra engolir o choro na última sexta, quero mais é tomar um Brunello do Galvão Bueno e brindar as felicidades possíveis. Desde que alguém me presenteie com esse vinho, claro. A taça eu garanto.