Imaginem que a Fifa desistisse momentaneamente do futebol e trocasse os enfrentamentos das semifinais da Copa do Mundo do Catar por rodadas de debates diplomáticos entre os quatro países classificados. As autoridades reuniriam representantes da França, Marrocos, Croácia e Argentina em uma mesa no mais luxuoso hotel de Doha. As duas nações que fechassem os melhores acordos avançariam para a final, voltando, assim, para o campo de jogo.
A conversa mais tensa seria, sem dúvida, entre os dois países que falam francês. Colonizador e colônia até 1956, França e Marrocos têm mais de quatro décadas de convivência fora das quatro linhas. No último sábado (10), a festa dos africanos que vivem em Paris após a classificação marroquina para a semifinal foi encerrada com tiros e bombas pela polícia francesa, por conta da efusividade e do tamanho da multidão que tomou as ruas da capital francesa.
No Catar, por proximidade geográfica e afinidade cultural, a maior torcida local é para o time que eliminou Espanha e Portugal nas oitavas e quartas de final, primeiro representante do continente africano em uma semifinal. Ainda que, dentro de campo, mais da metade da delegação (14 dos 25 atletas) tenha nascido em outros países, inclusive os destaques Hakimi, espanhol, Zyiech, holandês, e o goleiro Bounou, canadense.
A imprensa francesa destacou, nesta segunda (12), o momento delicado entre os governos dos dois países. Se a independência do Marrocos foi menos traumática do que a da vizinha Argélia, há dificuldades causadas pela redução de concessão de vistos franceses aos africanos semifinalistas, por exemplo. No entanto, não houve uma guerra sangrenta que tenha marcado a fase de protetorado da França sobre Marrocos, entre 1912 e 1956, o que torna a memória dos antepassados menos violenta do que o caso croata.
Croácia e suas cicatrizes
Os algozes brasileiros tem na resiliência física e emocional o maior trunfo nesta Copa. E também na sua sociedade. País jovem com independência apenas em 1991, enquanto a Iugoslávia se dividia ao longo dos anos 1990 com confrontos armados, tem no seu elenco jogadores que cresceram em meio a guerras, fugindo de conflitos e adaptando suas vidas a situações adversas. O camisa 10 e líder Luka Modric, 37 anos, viu seu avô morrer quando tinha 6 anos de idade, época em que a família migrou para se afastar das batalhas que assolaram a região no começo dos anos 1990.
Menor dos quatro países, a Croácia tem apenas quatro milhões de habitantes - um décimo da rival direta Argentina. Assim como os latinos, viu parte de sua população pegar em armas para defender o território e a identidade nacional, criando rivalidade com outros países. No caso dos croatas, a belicosidade se dava, até 2009, com Sérvios e Bósnios, conflito superado quando a Croácia ingressou na Otan, uma década após a entrada na União Europeia. Já os castelhanos, carregam até hoje as cicatrizes da invasão inglesa às Malvinas, vingada dentro de campo por Diego Armando Maradona em 1986, mas nunca esquecido.
Os argentinos
É com o patriotismo na ponta da chuteira de Messi que os argentinos esperam superar a Croácia, que os eliminou em 2018, nesta terça-feira (13). Abençoado pela memória e frases históricas de Maradona, a “Scaloneta” leva para o campo o orgulho e a paixão dos argentinos por suas obsessões.
Além de de símbolo positivos do país como Eva Perón, o mate e o churrasco, apenas eles podem criticar as coisas que ainda podem melhorar em seu território. A regra de ouro na imaginária mesa de negociações seria jamais questionar o atual governo de Alberto Fernández, a inflação galopante ou a influência da família Kirchner, com Cristina condenada por corrupção; muito menos propor uma comparação entre Maradona e Pelé.
Hinos e cores para a batalha
Apesar da distância cultural entre a França, berço dos direitos humanos e do positivismo iluminista do século XIX e a recém trintona Croácia, ambos compartilham um simbolismo que grita quando suas seleções entram em campo. O xadrez vermelho e branco dos croatas é uma referência ao brasão de armas do país, inspirado em lendas que envolvem o jogo de tabuleiro e o triunfo de governantes ao longo da conturbada história daquela nação.
Por outro lado, o hino francês, a Marselhesa, é uma ode à resistência popular que no final do século XVIII forjou a identidade nacional do país. A letra e melodia foram compostas por Claude Joseph Rouget de Lisle, um soldado e violinista amador de 31 anos em 1792, inicialmente como um canto de guerra. A ideia era motivar os defensores das fronteiras da França enquanto a Áustria invadia o país com o auxílio da nobreza, que tentava restabelecer a monarquia.
Um dos versos diz: "Ouvis nos campos rugir esses ferozes soldados? Vêm eles... degolar vossos filhos e vossas mulheres?". E o refrão entoa: "Às armas, cidadãos... Que um sangue impuro banhe o nosso solo". Isso sem falar na abertura do hino: "Avantes, filhos da Pátria... Contra nós a tirania, o estandarte ensanguentado se ergueu". Uma poesia que não passa desapercebida pelos jogadores nem torcedores antes de cada partida.