Um cara de bem com a vida e feliz com o momento que atravessa em sua carreira profissional. Assim pode ser definido Luís Carlos Cirne Lima de Lorenzi, gaúcho de Porto Alegre, 46 anos completados no último mês de agosto.
Se você não o reconheceu pelo nome pomposo, que poderia ser de um ministro de Estado, que tal Lisca? Ou Lisca doido? Figura carimbada do futebol gaúcho e que, aos poucos, vem ganhando espaço no Brasil com sua excelente campanha de recuperação com o Ceará na Série A do Campeonato Brasileiro.
E foi esse Lisca feliz, falante, sanguíneo e apaixonado pelo que faz que recebeu GaúchaZH no condomínio onde reside, no bairro do Meireles, em Fortaleza. Sem pompa alguma, em uma conversa de cerca de 30 minutos, falou sobre a alegria de estar sendo reconhecido nacionalmente, sobre o futuro e, claro, o passado no Rio Grande do Sul, onde tem um forte vínculo com o Inter, mas que também tem uma passagem importante pelo Grêmio, clube que ele diz se arrepender de ter saído.
Qual o segredo para o sucesso do Lisca no Ceará, pela segunda vez, já que você tirou a equipe de um rebaixamento para a Série C em 2015?
É minha segunda passagem aqui. A de 2015 foi muito marcante, com o mesmo presidente, Robinson de Castro. Nós chegamos com o Ceará quase rebaixado para a Série C. Conseguimos escapar, tínhamos 98% de chance de cair. Acabamos fazendo um trabalho legal aqui, deixando uma relação muito boa, as portas abertas. Esse ano, quando o Ceará se complicou no início da Série A, eu tinha quase certeza de que eles iriam acabar me convidando para voltar. E é um clube que eu gostaria de voltar, ajudar, porque é um momento importante para o clube e para mim também, numa Série A, onde não tinha tido a oportunidade de trabalhar de início de competição ou de recuperação. Aquela vez com o Inter, foi um caso totalmente diferente (dirigiu o time nas três últimas rodadas de 2016). Eu indiquei muitos jogadores que estão aqui na outra passagem. Hoje, eu tenho 12 jogadores no grupo que fizeram o acesso da B para a A, com seis, sete no time titular. Eu me senti na obrigação de vir ajudar. O Robinson me ligou e fez o convite, numa situação difícil também. Eu brinco com ele que dessa vez tinha mais tempo e que a chance de queda era só de 93% e não 98%, e a parada da Copa me motivou a vir porque eu sabia que eu teria três, quatro semanas, mesmo sem ter descanso de sete dias, como os outros, porque tínhamos a Copa do Nordeste. Eu já segui com treinamentos, mudando alguns processos, a maneira de jogar, estruturar a equipe de uma maneira mais competitiva. O Ceará jogava muito ofensivamente, marcava pouco, tomava muitos gols. Começamos a organizar de trás para frente, diminuímos muito o número de gols tomados. A média era 1,5 e passou para 0,4 por jogo. O primeiro terço da competição foi muito ruim, fizemos cinco pontos em 36 e no segundo terço, pós-Copa, e no segundo turno, nós temos a sexta campanha. Estaríamos brigando por Libertadores se eliminássemos as 12 primeiras rodadas. Chegamos neste último terço com possibilidade de brigar (contra o rebaixamento). Muita gente já não acreditava mais, muita gente aqui mesmo, no clube. Até os jogadores no início. Mas os resultados e o desempenho começaram a vir, começamos a ver os jogos contra as equipes mais fortes como uma oportunidade de mostrar o nosso trabalho. A maioria dos jogadores do Ceará está jogando pela primeira vez a Série A, então é uma grande oportunidade para eles também.
Como é a briga contra a queda para a Série B?
Eu sempre costumo falar que é uma competição muito difícil esta da zona de baixo, ainda mais para uma equipe que estava há muito tempo fora da Série A. É briga de cachorro grande. É Chapecoense, Vitória, Sport, América-MG, o Paraná já caiu, mas tem o Botafogo, o Vasco. Estes times estão todos apertados, mas estes primeiros que falei, mais ainda, e eu acredito que de Vitória, América, Sport e Ceará, um vai escapar. Então é muito duro ainda. Aqui na cidade (Fortaleza), muitas pessoas dizem que já escapou, mas não tem nada disso ainda. Nós precisamos de mais sete pontos, e quanto mais se afunila, mais difícil fica. Já perdemos para o Sport (rodada passada), que era muito importante, e agora temos essa pedreira que é o Inter. Saímos para pegar o Bahia, fora de novo contra o Fluminense, depois em casa pegamos o Paraná, que teoricamente se ganha, mas tem que confirmar. Depois saímos para pegar o Atlético-PR, que está muito bem, e terminamos contra o Vasco. Então, temos que achar duas vitórias e um empate nessas seis partidas. E o quanto mais rápido, melhor.
Como você avalia o seu momento profissional?
É um momento muito bom para mim, com reconhecimento do trabalho. Desmistificou um pouco a questão do "doido", que sempre me atrapalhou um pouco, mas que hoje também já se vê de uma maneira diferente. A Série A te dá essa possibilidade de aparecer mais, de falar, de explicar as coisas, e isso aconteceu também de uma maneira muito legal, com um apoio muito grande também do publico, das torcidas adversárias. Onde eu tenho ido, é um carinho muito grande. Na Ilha, no Mineirão contra o Cruzeiro, no Maracanã contra o Flamengo, as pessoas pedindo para tirar foto. Fiz muitas matérias, página inteira de jornal, coisa que eu nunca imaginava num trabalho com o Ceará. No Sul, também vocês deram muito respaldo, apareceu muito o trabalho, até porque vocês me conhecem e me apoiaram muito. Então, agradeço à imprensa do Rio Grande do Sul. Estamos em um momento legal, mas precisamos confirmar. Seria muito importante para mim esta permanência, junto com o Ceará, para poder dar uma sequência para o clube se manter, se estruturar cada vez mais. É um clube muito legal, redondinho, que cumpre tudo que promete, sempre em dia. Nós recebemos no dia 1º. Tem uma folha mais enxuta, hoje em torno de R$ 1,7 milhão por mês. Está muito legal trabalhar aqui, desde a outra vez. O clube está crescendo muito na estrutura, tem uma categoria de base legal. É importante para mim também, entrar neste mercado de vez, quem sabe me firmar e chegar cada vez mais longe. Chegar em um dos 12 maiores do país – os quatro de São Paulo, os quatro do Rio de Janeiro, os dois de Minas Gerais e os dois nossos do Rio Grande do Sul, que é o sonho de todo de todo profissional.
O quanto o rótulo de doido, que começou ainda no Juventude, te atrapalhou?
Muitas vezes, muitas vezes fica pejorativo para quem não conhece. Mas doido, pô... Tinha muita gente que achava que eu era pernambucano pelo trabalho no Náutico. As pessoas muitas vezes não te conhecem, a tua história no Inter, no Juventude, porque do doido lá, porque eu abracei a bronca lá. Eu valorizo muito as oportunidades que o Juventude me deu, que o Luverdense me deu de treinar pela primeira vez fora do Rio Grande do Sul, o Caxias, o Náutico me abriu as portas do Nordeste, o Ceará, que abriu o caminho da Série A. Claro que foi com toda essa dificuldade, e eu valorizo muito isso e me entrego muito para o trabalho. A briga é pelo trabalho e não pelo lado pessoal, é pelo clube, e muitas vezes eu me posicionava de uma maneira mais enérgica, de falar mais alto, de gritar, que é meu jeito, mas não para ofender. Então, muitas vezes as pessoas não entendem. Mas graças a Deus muitas pessoas que cruzaram o meu caminho entenderam esse meu perfil. Eu estou aprendendo, estou melhorando. Após uma derrota, eu falo menos, eu me afasto, deixo passar para o outro dia, já com a cabeça mais fria. Aí tu arrumas menos problema e nisso tu vais evoluindo, vai crescendo. Nisso, o presidente aqui, que se tornou um amigo pessoal, que conhece bem o meu temperamento, o meu perfil, me ajuda muito. É uma barreira que eu já ultrapassei e, hoje, o Brasil todo conhece e sabe o porque do "doido". Tenho tido algumas sondagens, situações legais e um reconhecimento de todo mundo. Isso me deixa muito feliz.
Se não cair, você vai ficar no Ceará, começar um trabalho, ou pensa em outro desafio?
Nós temos uma conversa já, eu e o Robinson (de Castro). Ele não iria ficar mais como presidente, por tudo que estava acontecendo, mas como as coisas foram mudando, 15 dias atrás se decidiu que ele seria o candidato único. Na segunda-feira (12), deve ser aclamado. E ele já me chamou, colocando a vontade da minha permanência, independentemente da situação de Série A ou B. Eu achei bem legal isso também. Ele quer dar uma sequência de trabalho, ele gosta muito do meu trabalho, do dia a dia, dessa transformação que fizemos aqui. Ele acompanha diariamente os treinamentos, entende de metodologia de trabalho. Ele me fez o convite, eu acho bem legal, mas combinamos de bater o martelo depois que tudo acontecer. Apareceram algumas situações (propostas) também, mas eu me comprometi a escutá-lo primeiro, ver qual a ideia do Ceará. Ele fez uma proposta bem legal num primeiro momento, valorizando bem, mas vamos aguardar. Tem algumas expectativas grandes que também podem acontecer, e se vier aquele convite irrecusável, ele (presidente do Ceará) sabe também qual é esse convite. Mas acredito que possamos permanecer e fazer um ano bem legal.
Tenho orgulho muito grande
LISCA
Sobre a passagem pelo Inter no ano do rebaixamento, em 2016
Passados dois anos, você se arrepende de ter assumido o Inter faltando três jogos para o rebaixamento?
Eu fui criado dentro do Inter. Eu entrei em 1990, nas escolinhas, e dali, entre idas e vindas, fiquei até 2007. Foram cinco, seis vezes. Passei por todas as categorias. Me formei como profissional e como homem ali e sou grato ao Inter. Eu comecei com 17 anos e saí de lá com 37. Foram 20 anos. E eu conheço muito o presidente Fernando Carvalho (vice de futebol em 2016), a nossa relação é antiga, desde a década de 1990. Eu acompanhei toda a transformação do Inter. Trabalhei com todos os presidentes e estava acompanhando toda aquela situação. Quando o Celso Roth foi demitido, faltando três rodadas, o Fernando ficou sozinho, em uma situação complicada. O Odair estava lá, mas ele tinha perdido aquele Gre-Nal dos 5 a 0, era muito complicado para ele entrar naquela situação, que o próprio clube já esperava. Era viável, nós precisávamos fazer sete de nove pontos e fizemos quatro. Faltou uma vitória, que seria contra o Corinthians, ou uma vitória contra o Fluminense e empate contra o Corinthians, já que ganhamos do Cruzeiro. Mas quando eu vi o pênalti que deram contra nós no Corinthians, vi que a coisa era mais séria do que eu imaginava. Porque não era só dentro do campo. Hoje, vendo tudo o que passamos, dois anos depois, tudo que se desenrolou, todo trabalho da imprensa, do Ministério Público, vemos que a coisa era bem complicada. Mas eu não me arrependo e até tenho orgulho muito grande. Eu ouvi uma entrevista do presidente Marcelo Medeiros de que foi o pior momento da história do clube. E eu não neguei estender a mão e tentar ir para a trincheira, de frente, e tentar. Eu tinha esperança, não vou mentir, tinha esperança de tentar mudar aquele panorama que estava, mas aconteceu uma série de circunstâncias, o acidente da Chapecoense, o Inter entrando na justiça no meio daquilo tudo. Mas eu tenho o maior orgulho e não me arrependo de nada. Iria de novo, porque é uma honra ter sido convidado, mesmo no pior momento da história do clube. Mas foi uma grande experiência para mim, para o Inter. Hoje, está aí a prova, não só dentro de campo, mas fora de campo. E eu lembro que comentei na época, no jogo com o Fluminense, que quando você vai no fundo poço só tem um caminho, que é reerguer. E o Inter está fazendo a cartilha certinha. Voltou da Série B com um pouco de dificuldade, está fazendo uma grande Série A, crescendo no número de sócios, a estrutura crescendo, o CT tem novos investimentos e muita coisa ficou para trás. Mas agora estão revendo tudo, fazendo um levantamento, uma apuração de questões fora do campo, no nível de diretoria, de procedimentos. Eu acho que quando se vai no fundo poço, se volta com mais força.
Você trabalhou no Grêmio, no sub-20, em 2005, e ajudou a revelar jogadores como Marcelo Grohe, Lucas Leiva, Anderson e Carlos Eduardo.
O Grêmio tinha caído e me chamou para reformular as categorias de base, porque falavam que não tinha jogadores. E olha os jogadores citados. O Grêmio não tinha se classificado para a final dos juniores de 2004 (no Gauchão), estava com uma dificuldade financeira enorme. Nós não tínhamos nem ônibus para treinar em Eldorado do Sul. Por isso, treinávamos no suplementar do Olímpico. Quando eu cheguei, fui olhar o time e disse: peraí, a gente tem coisa aqui em casa. Eu senti que os jogadores do Grêmio estavam um pouco devagar nos juniores. Na primeira semana de treinos, os jogadores tiveram bolha no pé e assadura no calção, na perna. Os caras não estavam treinando muito. E eu, um dia, os coloquei em uma sala e falei para eles que eles seriam os responsáveis de tirar o Grêmio daquela situação, porque o clube não teria dinheiro para sair contratando. E, na Série B, eles seriam os carros-chefe. Eu estava certo, porque lá na Batalha dos Aflitos estavam o Anderson, o Lucas, o Grohe no banco, o Luís Felipe (lateral-direito), o Samuel (atacante), e eles todos cresceram muito depois daquele trabalho com o Mano Menezes. Na Copa São Paulo, nós fizemos uma campanha muito boa, vencemos quatro jogos e perdemos nas quartas de final para o Vila Nova. Depois, o Anderson e o Lucas cresceram muito. Foi um momento muito legal da minha carreira, porque ser convidado pelo Grêmio depois de muito tempo no Inter é um reconhecimento do trabalho, eu fui com muita vontade. Trabalhei muito forte no Grêmio, foi muito legal. Uma das coisa que eu me arrependo na minha carreira foi de ter saído do Grêmio para ir para o Fluminense. Disso eu me arrependo, porque o Fluminense não cumpriu nada comigo. Três, quatro meses depois, eu já não estava mais no Fluminense. Eles tinham emprestado o Alexandre Gama (técnico do sub-20) para a Inter de Limeira-SP, e como ele foi muito mal no Paulistão, retornou. E aí eles me demitiram três dias antes de embarcar para disputar o Mundialito em Dubai. O Alexandre assumiu, foi campeão com meu time e ficou lá em Dubai. Aí o Fluminense queria me chamar de volta, e eu disse não. Fiquei um ano bem triste, foi uma troca errada. Mas foi experiência também. Foi um grande prazer trabalhar no Grêmio.
O Fortaleza se garantiu na Série A, o CSA pode subir, o Bahia vai permanecer, o Ceará pode ficar, Sport e Vitória estão brigando para não cair. O quão importante é para o Nordeste, apaixonado por futebol, ter vários clubes na Primeira Divisão?
É muito legal. Todo mundo fala nisso aqui na cidade. Tem a rivalidade, e o torcedor de um não quer que o outro suba e tal. Mas o Fortaleza fez um grande trabalho esse ano com o Rogério Ceni. Fez um grande investimento, é o ano do centenário do clube e eles vieram com tudo, fizeram uma campanha exemplar. Eles fizeram uma grande festa o centenário, uns 15 dias atrás, coisa de primeiro mundo, e ali eu vi que o Fortaleza é um grande clube, gigante também. Eu até falei isso para os meus jogadores. Toda cidade comenta isso, que seria muito importante para Fortaleza ter o Clássico Rei de novo na Série A. Sozinho, o Fortaleza leva 50 mil pessoas para o Castelão, o Ceará também leva. Então imagina quando os dois se encontrarem na Série A. Seria importante para a cidade, que é muito turística, e muitos dos turistas vão aos jogos. O futebol do Nordeste, os caras são apaixonados, os clubes estão crescendo, especialmente na estrutura.
Lisca por Lisca.
O Lisca é um cara que começou cedo, apaixonado por aquilo que faz. Me encontrei cedo na vida, o que é difícil. Entrei na faculdade de Educação Física com 17 e saí com 21 anos. Entrei no Inter com 17 e me apaixonei pela profissão. Foi paixão à primeira vista. Mudou a minha vida, não só no lado profissional, mas no pessoal. Como todo mundo sabe ,eu venho de uma família estruturada, com boa condição financeira, e o futebol me mostrou um outro lado totalmente diferente. Uma convivência com outras classes sociais, o que me abriu muito a cabeça para uma série de assuntos. O Lisca é um cara que casou, tenho as minhas filhas, a Giovana, a Antônia. Sou casado com a Daniela há 16 anos. Sou família pra caramba e tenho um prazer muito grande de fazer o que eu faço. Tive oportunidade, pelo meu trabalho, de conhecer praticamente o Brasil inteiro. Consigo dar boas condições para a minha família e sou um cara que tem muitos sonhos ainda, que quer crescer na profissão, que sabe que tem um bom conhecimento, que tem uma boa qualidade, mas que precisa melhorar uma série de situações, como todos nós, mas que tem muita esperança de alcançar os seus sonhos.