A divulgação de imagens de estudantes de um colégio privado gaúcho vestidos com fantasias alusivas a profissões que adotariam se "nada der certo" – como atendente de lanchonete ou faxineira –, conforme o mote de um recreio temático, despertou controvérsia na internet e um debate sobre o preconceito social no Brasil.
Os adolescentes viraram alvo de críticas e ofensas por supostamente desrespeitarem categorias profissionais, mas orientadores educacionais sustentam que os questionamentos deveriam abranger famílias e escolas. Eventos semelhantes já ocorreram em outras instituições de Ensino Médio dentro e fora do Estado.
Fotos e vídeo do recreio na escola IENH – Fundação Evangélica, de Novo Hamburgo, foram divulgados no site Bombô em 17 de maio, mas o caso viralizou após a publicação de imagens no YouTube no domingo. O uso das fantasias rendeu críticas de alienação e desrespeito, embora o colégio e os participantes neguem intenção pejorativa.
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– O tema apresentado a nós pelos alunos era "o que fazer se não passar no vestibular". Era uma brincadeira que já havia sido feita em outros anos para aliviar a pressão de passar no vestibular. Com a repercussão, paramos para pensar e pedimos desculpas, mas também houve uma má interpretação – sustenta a psicóloga educacional da escola, Patrícia Neumann.
Os "recreios temáticos" não são raros entre formandos. Outro evento desse tipo já havia sido realizado, por exemplo, no Colégio Marista Champagnat, em Porto Alegre, em 2015. Com a controvérsia atual, a instituição apagou as fotos do seu site e, em nota, argumentou que "no mesmo ano, a partir de uma reflexão realizada com a comunidade educativa, entendemos que a temática não era apropriada, por isso não ocorreram outros episódios em anos seguintes".
Em redes sociais, há registros e convites para atividades parecidas em outras regiões, como São Paulo. Para a professora de Pedagogia e orientadora educacional Denise Arina Francisco, mesmo que não exista intenção de constranger, o tema "se nada der certo", que costuma ser adotado nesses recreios à fantasia, traduz um preconceito social que nasce dentro de casa e não é suficientemente discutido nos colégios.
– É comum os pais dizerem aos filhos que, se não estudarem, vão ter de trabalhar de lixeiro, pedreiro, esse tipo de coisa, sem se preocupar em valorizar as pessoas. É preciso mudar o discurso em casa – diz Denise.
Jovens precisam de diálogo e orientação
Em vez de autorizar "brincadeiras" envolvendo profissões, Denise opina que a função social da escola exige discutir e contextualizar esses temas:
– Se não tivéssemos garis, por exemplo, como seria a vida na nossa cidade? Ser gari quer dizer que nada deu certo na vida de alguém?
A psicopedagoga e orientadora educacional Eliane Dutra da Silva afirma que a impulsividade e a irreverência características da adolescência podem dificultar o julgamento de ações como essas. Por isso, é importante haver monitoramento e diálogo, em vez de apenas condenação aos jovens.
– A escola tem de acompanhar melhor essas atividades, orientar, assim como os pais – sugere Eliane.
Uma das alunas envolvidas no episódio em Novo Hamburgo queixou-se dos ataques que ela e os colegas vêm recebendo nas redes sociais: "Ao invés de criticar tudo o que vemos na internet (...), vamos olhar para nós mesmos primeiro e melhorar nossa mentalidade antes de achar que o outro está sempre errado (...)". A escola informa que também foram registradas ameaças de violência contra estudantes.
– Isso tudo é reflexo de uma sociedade desigual, hierarquizada do ponto de vista do formalismo e não do valor das pessoas – analisa a filósofa e professora de Ética e Filosofia Política Cecília Pires.
O papel de cada um
Especialistas dão recomendações a pais, alunos e escolas
Estudantes
- Mesmo que uma atividade não tenha intenção de agredir, pode ser vista como agressiva ou discriminatória. É importante discutir com educadores e familiares os possíveis impactos de brincadeiras envolvendo temas sensíveis como estereótipos sociais.
- É importante sempre colocar-se no lugar do outro antes de dizer ou fazer algo que possa soar desagradável.
Escolas
- Devem ser locais de reflexão e contextualização sobre temas atuais no Brasil, como diferenças sociais, dificuldades de acesso a educação e trabalho, a relação entre ética e trabalho, e os mecanismos pelos quais o preconceito se perpetua.
- Precisa dar atenção a eventos realizados em suas dependências e analisar com cuidado se estão de acordo com a proposta educacional da instituição.
Famílias
- Muitas vezes, sem perceber, estimulam o preconceito ao utilizar determinadas profissões como referência de fracasso ao tentar mobilizar os alunos a estudar mais.
- É importante discutir em casa, também, temas como trabalho, ética ou que itens definem o sucesso pessoal.
Fontes: orientadoras educacionais Denise Arina Francisco e Eliane Dutra da Silva, e filósofa Cecília Pires