Com 80 anos de idade e 50 de carreira, o sociólogo francês Michel Maffesoli esteve em Porto Alegre em novembro, para participar e receber homenagens no 16º Seminário Internacional da Comunicação, realizado na Escola de Comunicação, Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Em entrevista à Zero Hora, o pensador – um dos principais teóricos da pós-modernidade – disse se sentir um pouco profeta, uma vez que aspectos que ele previu no início de sua carreira, como a desvalorização, pelas novas gerações, do trabalho e da política, se confirmaram. O intelectual ainda aponta o Brasil como um “laboratório da pós-modernidade”, onde esses fenômenos são verificados antes de outros países, e destacou as redes sociais e a inteligência artificial como novos totens em torno dos quais as pessoas se reúnem e se relacionam.
Confira a entrevista:
Ao longo de 80 anos de vida e 50 de carreira, que transformações o senhor identificou na forma como as pessoas se relacionam na pós-modernidade?
Eu vou pedir licença para dizer que fui um pouco um profeta. Nos anos 1970, quando eu publiquei os meus primeiros livros, eu já estava atento àquilo que já estava se elaborando. E, em particular, porque ao longo destes 50 anos, meus estudos falaram sobre a geração de amanhã que, de fato, se tornou a geração de hoje. Antes de responder exatamente, eu devo dizer que eu considerei que essa geração jovem era a sociedade do amanhã, mas já era a sociedade do hoje.
Não havia mais a prevalência do valor do trabalho e não havia mais a importância da política. Por outro lado, nós vemos o retorno dessa ideia de criação: essa ideia de viver o que eu chamei de “tempo das tribos”, de viver com os outros, aqui e agora. Essas são as duas grandes características: a desvalorização do trabalho e da política. E essa geração, de uma maneira premonitória, foi a que eu analisei nos meus primeiros livros.
Não posso falar sobre o Brasil, porque eu não conheço tanto, mas eu vejo que na Europa, isso que eu estou dizendo de fato se desenvolveu. Atualmente, e eu digo isso com prudência, porque não sou especialista em Brasil, mas eu sempre vi o Brasil como um laboratório da pós-modernidade.
Eu sempre indiquei essa ideia, porque eu via a importância da comunidade para os brasileiros. Eu via a importância do corpo também, em sua diversidade, etc. Então, de certa forma, isso quer dizer que o Brasil antecipa o que, depois, é amplamente difundido na Europa. Eu tenho muitos estudantes brasileiros, que vão estudar na Sorbonne. Creio que orientei 40 doutores, que vieram de Porto Alegre a Belém, e vejo que os brasileiros, em Paris, vivem sempre em comunidade, ao passo que os franceses são isolados. Eles estão sempre juntos. Eles comem juntos, saem juntos.
O senhor falou sobre a redução da importância da política na sociedade. Com a polarização, nos últimos anos, esse fenômeno mudou? Houve um reforço na valorização da política?
Não. Para mim, não. Eu escrevi um livro na França que se chama L'Ère des Soulèvements (A Era dos Levantes, em tradução em português), mas não é sobre política, e sim sobre a revolta, a insurreição das pessoas. Elas fazem manifestações, concertos musicais, festas raves, mas não são expressões verdadeiramente políticas.
A ideia da política, que foi sobre o que eu falei na minha conferência na PUCRS, é centrada em criar a sociedade perfeita de amanhã, seja a política de esquerda ou direita. Essa manifestação juvenil, por exemplo, é voltada para o aqui e o agora. O foco da política é o futuro e a tendência atual, que eu chamo de juvenil, é focar no presente.
Na França, na Itália, na Espanha, na Alemanha, países que eu conheço bem, os partidos políticos não têm mais jovens, e têm cada vez menos pessoas filiadas. Nas últimas eleições do sindicato da Sorbonne, a participação foi de 1,5%. Essa é a grande tendência. Considero que a política foi a grande ideia da modernidade. Isso funcionou até 1964, 1968. Depois, nas últimas décadas, foi decaindo.
Na última década, no meu curso no Anfiteatro Émile Durkheim, na Sorbonne, nenhum dos meus estudantes era politizado. É o contrário do que acontecia no início da minha carreira. Por outro lado, assistimos a uma multiplicidade de manifestações e mesmo de levantes que podem ser muito sangrentos, violentos.
Há rupturas sociais, mas não políticas, certo?
Isso mesmo. Essa foi a verdadeira transformação social, que, pela minha hipótese, representa uma verdadeira mudança de época, do período moderno para o período pós-moderno. A cada vez que há uma mudança de época, é inevitável que haja insurreições, revoltas.
A própria Revolução Francesa foi assim. Eu ressalto a palavra “efervescência”, de Durkheim, para falar sobre essas insurreições.
O senhor diz que não é um especialista em Brasil, mas já esteve aqui em muitas ocasiões. O que o senhor percebe de especificidades do nosso país na forma de nos relacionarmos socialmente, na comparação com outras nações?
Eu comparo o Brasil com a Coreia do Sul, porque eu vou muito à Coreia do Sul. Eu acho que há muitas semelhanças entre esses dois países, sobre o que eu disse no começo, da comunidade, do estar junto, e o que eu chamo de "presenteísmo", o presente.
Mais uma vez, não sou especialista, mas o que eu sinto sobre o Brasil são esses dois aspectos. Eu venho ao Brasil desde 1980. O que me chamou a atenção desde o início é a diferença em relação ao isolamento individualista que eu percebo em outros países. Aqui, sempre houve essa ideia de se reunir. Na Coreia é a mesma coisa. Não que não aconteça em outras nações também, mas eu vejo muitas semelhanças nesses dois pontos que, para mim, são importantes.
Podemos chamar como quisermos: tribos, comunidades, grupos. Não tenho o fetichismo do conceito. É o que Durkheim chama de “corpo social”. O corpo é valorizado, celebrado. Essa celebração você vê, por exemplo, nas tatuagens. Manifestações desse tipo se desenvolveram também na França, mas é um símbolo. As tatuagens são uma manifestação utilizada tradicionalmente por tribos, que demarcam uma forma de pertencimento.
Como a pandemia transformou o funcionamento das tribos urbanas?
Eu não chamo de pandemia, mas de psicopandemia. Foi uma maneira de a classe dominante sentir o seu poder desaparecer, cessar. Eu não digo que não havia uma doença, mas nós exageramos essa doença para torná-la uma pandemia. Para mim, foi uma forma de o poder dominar as pessoas em um momento de decadência desse poder. Eu tinha amigos muito queridos que morreram durante a pandemia, inclusive no Brasil. Eu não nego a existência da doença. Eu digo apenas que houve um processo de exageração que tornou a pandemia psicológica.
A pandemia gerou uma mudança societal, mas, ainda assim, há pessoas que eu conheço na França que seguiram se reunindo para encontros sociais nesse período. Eu estava confinado em uma pequena comunidade, com as minhas filhas, mas, nesse vilarejo, havia encontros sociais diários de 20, 30 pessoas. A pandemia acelerou essa ideia tribal, de vontade de estar junto, da qual falo na minha obra, e ela segue agora.
Tenho muitos amigos que entram em contato pela internet e eu os convido para tomar uma bebida. Eu falo muito, mas também aprendo muito nessas ocasiões. Tudo o que eu digo aqui tem muito do que eu aprendo durante esses momentos.
Na enchente que vivemos aqui no RS, o atendimento de emergência foi feito tanto por pessoas geograficamente próximas como por pessoas de outros Estados e países, que mandaram doações ou vieram ajudar. A forma como nos relacionamos hoje facilita ou inibe a identificação das pessoas com situações como essa?
Eu não conheço essa situação aqui de Porto Alegre, mas seja aqui ou na Espanha, onde também houve inundações, ou eventos menos violentos, mas também importantes, que ocorreram na França, o que é paradoxal é que nós vemos se desenvolver a ajuda, a generosidade, a partir de atos de serviço. São termos antigos, normalmente associados a questões econômicas. E a internet está lá, e é nela que, cada vez mais, vai se criando essas comunidades de generosidade. O corpo social, como eu disse, é evidenciado em uma inundação ou uma catástrofe.
Não é unicamente a verticalidade do Estado, mas sim a horizontalidade da comunidade, e que, cada vez mais, essa horizontalidade se manifesta por meio de comunidades, compartilhamento, benevolência. São termos que vemos muito nas redes sociais e nos fóruns, que traduzem essa solidariedade orgânica, e não a solidariedade mecânica das instituições sociais.
Essa solidariedade orgânica vai se desenvolver. A definição que eu dou da pós-modernidade, um pouco universitária, é a sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico. Arcaico, aqui, não no sentido habitual de algo antigo e superado. “Arcaico”, do grego, diz respeito ao que é fundamental.
É a sinergia entre o que é fundamental para o ser humano e daquilo que vem de uma ideia de multiplicidade de tecnologias. A tribo clássica é isso: é o estar juntos para lutar contra as adversidades da natureza, os animais, a selva, as inundações. É a tribo e a internet, e essas formas de solidariedade que se apresentaram aqui no Rio Grande do Sul, para mim, são manifestações evidentes disso.
Como as redes sociais transformam a maneira das pessoas se comunicarem?
Para mim, a verdadeira informação vai passar pelas redes sociais, pelos blogs, pelos fóruns de discussão. Está lá a grande tendência do momento. Na França, por exemplo, jornais como o Libération, o Le Monde e o Le Figaro têm, ao todo, 450 mil leitores. Na televisão é a mesma coisa. Por outro lado, as informações em redes sociais têm se desenvolvido. Para mim, essa será a grande tendência das novas gerações e, portanto, da sociedade. Meus filhos, por exemplo, não veem televisão, e eles nem são jovens.
E o crescimento da inteligência artificial, de que forma impacta esse comportamento?
Antes de responder, preciso trazer uma pequena imagem histórica. No terceiro ou quarto século da nossa era, da decadência humana, havia três religiões importantes: o mitraísmo, o orfismo e o cristianismo. As duas religiões que, supostamente, triunfariam, eram o mitraísmo e o orfismo, porque eram as religiões dos oficiais, dos nobres, das pessoas importantes. O cristianismo era a religião dos pobres, dos soldados.
Naquele momento, a Igreja de Milão, na Itália, segredou o dogma da comunhão dos santos. Com isso, a pequena Igreja de Milão foi unida em espírito com as igrejas de Narbona, de Lyon, de Roma, de Paris, e foi por causa da comunhão dos santos que o cristianismo triunfou contra as duas outras religiões. Para mim, a internet é a comunhão dos santos pós-moderna.
Pequenas tribos se reúnem, se conhecem e se entregam umas às outras. E um dos elementos da comunhão dos santos é, justamente, a celebração de estátuas dos santos. Para mim, a inteligência artificial, atualmente, faz a mesma coisa. São santos que fazem com que as pessoas se reúnam em torno de uma imagem.
Hoje, o totem são as redes sociais e a inteligência artificial. Nós nos reunimos ao redor delas, comungamos e nos relacionamos a partir delas. Eu já tenho mais idade, mas vejo que essa nova geração vive tudo por meio da tecnologia. É o que a alimenta e é lá que acontece essa comunhão, que é um termo que vem do catolicismo. É um ritual, e, para ser um ritual, é necessário que ele seja compartilhado.