Com gastos fora do previsto diante de estragos e falta de reservas, os impactos da tragédia climática que atingiu o RS em maio pressionam o orçamento das famílias. Pesquisa dos Cartórios de Protesto do Rio Grande do Sul aponta que a enchente afetou a renda de seis em cada 10 pessoas nos principais municípios atingidos pelo aguaceiro na Grande Porto Alegre. O levantamento também mostra alto nível de inadimplência entre os moradores dessa região.
Realizada por meio de abordagem presencial em Canoas, Eldorado do Sul, Guaíba, Porto Alegre e São Leopoldo, a pesquisa aponta que metade dos 500 entrevistados deixou de pagar contas por causa da enchente. No ranking dessa inadimplência, cartão de crédito, contas de água e de energia elétrica lideram entre as principais pendências, segundo o dado (veja no gráfico).
Economista dos Cartórios de Protesto, Karine Flores afirma que parte dos moradores atingidos pela inundação cobriu os custos dos estragos se endividando. Agora, mesmo com a renda voltando ao normal, existe esse passivo que pressiona ainda mais o orçamento, segundo a especialista:
— A pessoa teve uma diminuição na renda por conta desse evento climático, que causou inadimplência para muitos. E algumas não tinham uma reserva de emergência.
Segundo o estudo, 59% das pessoas ouvidas não tinham uma reserva de emergência, o que impulsionou ainda mais a inadimplência sem controle, segundo a economista. A consulta também aponta que a metade dos entrevistados informou ter perdido bens materiais. Ao todo, 60% das pessoas entrevistadas precisaram gastar dinheiro extra para lidar com os efeitos da inundação. Os principais itens adquiridos foram roupas e calçados e bens perdidos durante as enchentes, como móveis, eletrodomésticos e eletrônicos.
A economista afirma que esse cenário de inadimplência gera uma preocupação para o futuro, pois provoca uma queda no consumo em um ambiente onde muitas pessoas perderam quase tudo e não conseguem controlar o endividamento.
A pesquisa foi feita de maneira espontânea, sem levar em conta filtros ou bancos de dados dos Cartórios de Protesto. Como algumas instituições e empresas seguraram o envio de dívidas para protesto em razão da situação de calamidade, essa pressão da inadimplência ainda não reflete nessa esfera extrajudicial. Existe uma espécie de atraso nessa evolução, segundo a economista dos Cartórios de Protesto.
Alessandro Miebach, professor de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), afirma que, além de comprometer a renda das famílias, as dívidas em atraso também afetam as empresas. Esse efeito é mais forte nos pequenos negócios, segundo o especialista:
— Nas empresas que, por exemplo, financiam diretamente seus clientes, negócios que, às vezes, não operam diretamente por intermediários financeiros, esses efeitos são mais impactantes, porque vai afetar fortemente o fluxo de caixa.
Enfrentamento
A economista dos Cartórios de Protesto afirma que um dos primeiros passos para enfrentar essa situação de renda comprometida é a organização financeira. Em seguida, cita a necessidade de programas de transferência de renda, como alguns lançados até o momento pelo poder público. Mesmo insuficiente diante de situações mais graves, esse mecanismo ajuda no processo de recuperação, segundo a economista:
— Já é um respiro, nem que seja para pagar o cartão de crédito e depois ir, aos poucos, dando uma ajustada de alguma forma nas outras dívidas, mas tentando priorizar essas dívidas com juros mais altos para conseguir fazer a roda girar.
O levantamento mostra que cerca de 30% dos entrevistados receberam assistência financeira do governo, de organizações de ajuda ou de pessoas físicas após a enchente. Dentre desse grupo, 64% tiveram ajuda via Auxílio Reconstrução.
O professor de economia da UFRGS afirma que um dos caminhos para o enfrentamento dessa situação de inadimplência e comprometimento da renda também passa por crédito e renegociação para mitigar o custo da dívida. Além disso, citou a importância de avanços na infraestrutura, como retomada do aeroporto Salgado Filho e recuperação de estradas no Interior:
— O crédito depende que a renda continue a ser gerada. E nesse sentido, a recuperação da atividade econômica é fundamental. Então, a gente conseguir recuperar nossa infraestrutura é importante. A gente conseguir, por exemplo, ter um prazo e uma solução para as questões de infraestrutura do Estado, que implicam em custos para as empresas e para as pessoas físicas, é fundamental.
Outros dados da pesquisa
- A pesquisa foi realizada entre os dias 25 de junho e 3 de julho
- 53% dos entrevistados relataram perdas materiais
- 24% dos que tiveram bens materiais atingidos pela enchente informaram que perderam tudo o que tinham dentro de casa. Já 11% perderam a casa inteira, restando apenas o terreno. 7% perderam seus veículos.
- A inundação impactou o acesso a serviços financeiros de 63% dos entrevistados
- 8% das pessoas perderam o emprego e 7% contraíram empréstimo por conta da enchente.