A água que serve o mate de dois terços da população gaúcha flui por 30 mil quilômetros de tubulações enterradas em 64% dos municípios do Estado. Em linha reta, esses canos iriam do Oiapoque ao Chuí sete vezes e ainda sobrariam dutos. Desde 2014, a manutenção e ampliação desse circuito custou R$ 717,6 milhões à Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), empresa que está sendo preparada pelo governo do Estado para ter suas ações negociadas na bolsa de valores 55 anos após ser criada.
Sem recursos para investimento e necessitando abrir mão de patrimônio público em troca da adesão ao regime de recuperação fiscal — acordo com a União que suspenderia temporariamente o pagamento da dívida —, o governador Eduardo Leite está inclinado a vender 49% da estatal no segundo semestre de 2020. A negociação manteria a autarquia nas mãos do Estado, e, ao mesmo tempo, ampliaria seu poder de investimento. Isso seria possível porque Leite tem indicado a intenção de usar parte dos recursos para permitir que a empresa tenha condições financeiras de bancar parcerias público-privadas (PPPs), apontadas como a melhor alternativa para a realização de obras de saneamento.
Antes da oferta inicial (IPO,na siga em inglês), a autarquia precisa atender a exigências da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Entre elas, fazer análise preliminar da conveniência da transação, escolher auditor independente, definir características da operação e adaptar seu estatuto.
Dos ramais que recortam o subsolo, verteram 544 milhões de metros cúbicos de água potável em 2018, volume que encheria 220 mil piscinas olímpicas. E a ampliação deve avançar. A Corsan toca, atualmente, 180 obras que somam quase R$ 1 bilhão. Ainda que ostente satisfação de 80% dos clientes e tenha expertise valorizada por prefeitos, a eficiência não passa incólume a reclamações, sobretudo no trato com esgoto.
A insatisfação é reflexo de descumprimento de prazos e escassez de investimentos, avalia o presidente da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), Dudu Freire. Em 2018, a Corsan pagou à Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do RS (Agergs) seis multas que somam R$ 150 mil, todas por infrações contratuais.
A ouvidoria da Agergs recebeu, no mesmo período, 987 reclamações de clientes insatisfeitos com a companhia. A Famurs reconhece, porém, o potencial da estatal.
— Desempenha serviço de extrema relevância e entendo que, mesmo com dificuldades, pode atender às demandas que se apresentam. O maior problema está na falta de recursos —argumenta Freire.
Na contabilidade, a Corsan teve início de ano atípico. O prejuízo de R$ 32,6 milhões no primeiro semestre destoa da sequência superavitária acima dos R$ 100 milhões que mantinha no período ao menos desde 2014. Nos últimos cinco anos, fechou dezembro no azul. Em 2018, com lucro de R$ 292 milhões.
— É um resultado modesto diante da receita bruta de R$ 2,5 bilhões. A rentabilidade deveria ser bem maior. É essa baixa geração de renda que impede a Corsan de avançar em investimento e de atender como deveria os contratos — avalia o consultor na área de PPPs e concessões Marcino Fernandes Rodrigues Junior.
O prejuízo do primeiro semestre é minimizado pelo diretor-presidente da Corsan, Roberto Correa Barbuti. O dirigente considera o resultado uma "questão meramente contábil". A equipe técnica explica que, em razão da imunidade obtida para Imposto de Renda, "contabilizou a baixa dos saldos de créditos fiscais", o que gerou impacto negativo no resultado.
Secretário do Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos, a quem a Corsan está subordinada, é mais um dos defensores da abertura de capital. Alinhado às intenções de Leite, entende que a participação privada ampliará a transparência e permitirá o controle de governança por agentes de mercado. É o que pensa, também, o consultor em saneamento Sérgio Coelho da Silva.
— A Corsan, hoje, está sujeita aos rumores da política, presa a um viés ideológico hoje e a outro, completamente diferente, amanhã. É dependente de um governo competente aqui e de um incompetente ali adiante. Isso, obviamente, influencia. Talvez tenha sido esse um dos principais problemas para a companhia não ter avançado mais. Com capital aberto, vai ter outros agentes que a blindarão e a obrigarão a focar nos objetivos. É, também, uma alternativa de injeção de recurso na empresa — projeta Silva.
Porém, mesmo após o IPO nos moldes previstos, a Corsan continuará estatal, sujeita às regras do setor público, como a obrigatoriedade de contratações por licitações.
Interesse por parcerias público-privadas
Para responder a queixas de municípios sobre a qualidade dos serviços, o diretor-presidente da Corsan, Roberto Correa Barbuti, não usa de subterfúgios. Reconhece as deficiências e olha à frente para apontar soluções. Sugere intensificar as parcerias público-privadas (PPPs) e seguir avaliando de forma criteriosa as prefeituras potencialmente conveniadas. De 2014 a 2019, a Corsan deixou de abastecer três municípios.
A perda de terreno é justificada por uma política de expansão seletiva, atenta a benefícios mútuos. Essa cautela, nas palavras de Barbuti, permite à empresa orgulhar-se de ser "ótima na qualidade da água e de extrair o melhor do seu corpo técnico, considerado de primeiro nível".
— Estamos buscando melhorar nossa eficiência ao fazer roteiros mais bem elaborados para ganharmos velocidade na execução. Temos algumas limitações, sabemos disso — admite.
Sérgio Coelho da Silva, engenheiro civil e consultor na área de infraestrutura em saneamento, avalia que a estatal demorou para aderir a PPPs como a da Região Metropolitana, cujo edital foi lançado em 16 de agosto com previsão de investir R$ 2,2 bilhões para atingir 87,3% de coleta e tratamento de esgoto em nove cidades. A abertura dos envelopes está prevista para 25 de novembro, e a assinatura do contrato para março de 2020. Em 35 anos, a empresa receberá cerca de R$ 9,5 bilhões da Corsan.
— É tardia essa decisão. O Rio Grande do Sul ficou para atrás em relação a Estados do Nordeste, que já têm parte de suas companhias estaduais delegada a entes privados. É preciso buscar mais recurso nas diversas modalidades que existem. Com isso, haverá redução do prazo para atingimento da universalização do esgoto — considera Silva.
O consultor recomenda implantar concessões e subconcessões, firmar outras PPPs e locar ativos:
— Cada R$ 1 investido em saneamento nos poupa outros R$ 4 na área da saúde. Esse é um dado da ONU (Organização das Nações Unidas) atestado mundialmente. Esperar por recurso público, que demora muitos anos, para atender necessidade atual gera dano muito maior. A Corsan acerta em tomar esse caminho, mas precisa recuperar o tempo perdido.
Barbuti tem colhido no interior do Estado sugestões dos gestores. Em outubro, deve formalizar protocolo de intenções listando municípios interessados em firmar novas PPPs. A partir daí, irá desenhar futuras ações. Projeta que a próxima parceria com investidores privados se dê na Região das Hortênsias, ainda sem data definida.
Segundo Guilherme Naves, sócio da consultoria Radar PPP, investimento privado em infraestrutura é visto cada vez mais como prioridade nas administrações públicas do Brasil:
— Tem se mostrado uma alternativa interessante para viabilizar projetos de capital intensivo e para garantir eficiência na gestão do serviço público em comparação com meios tradicionais que os governos dispõem. Do ponto de vista legislativo, a tendência é de modernização do marco regulatório para tornar o ambiente mais favorável à participação privada.
Para atrair investidores e, ao mesmo tempo, atender anseios do governo, Naves aconselha que o cronograma do projeto seja alinhado às expectativas da sociedade, tenha programas socioambientais voltados para a comunidade local e que o nível de serviço prestado seja aferível, com alto índice de transparência.
Considerado por Barbuti o calcanhar de aquiles da Corsan, o esgoto necessita aporte de R$ 10 bilhões para atingir a universalização nas 296 cidades com as quais mantêm convênio. No ano passado, foram aplicados R$ 203,2 milhões, o maior volume dos últimos cinco anos.
— A distância é muito grande entre necessidade e investimento. Existe recurso disponível no mercado nacional e mundial para tornar a concretização desse objetivo mais veloz. A sociedade e as leis vigentes não toleram mais essa condição de 15% de esgoto tratado (percentual da Corsan nos municípios que atende) — diz Silva.
Preocupação com relação ao valor de tarifas
A venda de ações passa longe do consenso. A Famurs, por exemplo, posiciona-se contrária à negociação por entender que a permanência totalmente pública "manteria a responsabilidade da Corsan com pequenos municípios e com regiões mais carentes do Estado". Argumento semelhante é utilizado pelo diretor de divulgação do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado (Sindiágua), Rogério Ferraz:
— Os sócios privados irão visar somente lucro. A Corsan vai perder seu caráter social. Temos é de pensar em captar dinheiro público e aprimorar essa gestão que vem perdendo recurso federal — considera Ferraz.
— É preciso se perguntar o que vai acontecer com o preço da água após a abertura de capital. Qual será o objetivo da empresa? O principal risco é a redução de investimento para pagamento de dividendos — complementa Adalmir Marquetti, economista, professor da PUCRS e ex-presidente da extinta Fundação de Economia e Estatística (FEE).
Sobre o IPO resultar em prejuízo financeiro a clientes, Odair Gonçalves, diretor-geral da Agergs, responde:
— Vamos fiscalizar para não acontecer. Esse risco não existe onde a gente atuar.
A Agergs não regula a Corsan em todos os municípios porque seu olhar sobre a companhia depende de anuência das prefeituras. Atualmente, 283 cidades mantêm convênio mútuo com a estatal e a agência, o que permite a fiscalização. A Corsan esclarece que a tarifa é praticada de acordo com a tabela homologada pela agência reguladora. E que, portanto, "não haverá mudanças".
Perda de R$ 327,8 milhões por descumprir prazos
A Corsan perdeu R$ 327,8 milhões entre outubro de 2017 e julho de 2018, recurso repassado pelo governo federal para tratamento de esgoto. O motivo foi "descumprimento de prazos", explicou o Ministério do Desenvolvimento Regional.
Um dos 12 municípios prejudicados foi Canoas, terceiro mais populoso do Estado e maior centro atendido pela companhia. A cidade seria beneficiada com R$ 241,9 milhões em dois convênios, mas 63,95% do valor foi impugnado. Por outro lado, Canoas terá R$ 388 milhões investidos em esgotamento sanitário pelos próximos 10 anos. O dinheiro, dessa vez, vem da iniciativa privada — a PPP da Região Metropolitana.
Com o recurso perdido, seria possível erguer 12 estações de tratamento de esgoto (ETE) iguais a que foi inaugurada em dezembro em Osório, no Litoral Norte, beneficiando 30 mil pessoas.
— É um valor importante, ainda mais para o Rio Grande do Sul, um dos Estados que mais sofrem com problema de caixa — avalia Carolina Caiado, advogada especialista em Direito Público.
A Corsan alega que, "até 2014, havia recurso disponível" no orçamento da União, mas que, após 2015, a verba teve restrições de liberação, o que teria gerado atrasos.