Nos corredores e rodas de conversa no Badesul, o financiamento concedido para a Wind Power Energia é considerado o maior fiasco da gestão que esteve à frente do banco entre 2011 e 2014. Ocorreram problemas na análise de crédito e de garantias de pagamento. A forma de liberação dos valores também contrariou as normas usuais. O resultado foi um prejuízo sem precedentes. A empresa entrou em recuperação judicial e, depois de ter recebido o financiamento, foi colocada na classe H de classificação de risco, o último dos degraus negativos.
A Wind Power recebeu R$ 50 milhões do Badesul, por meio de linha do BNDES, para construir uma fábrica de geradores eólicos e seus componentes em Guaíba. O contrato foi assinado em 28 de março de 2013. A empresa pagou apenas R$ 1 milhão em 2014. O restante ficou sem quitação e a prometida fábrica não foi construída. Não se sabe o paradeiro do dinheiro, mas a dívida ficou com o Badesul, que mensalmente precisa cobrir parcelas no BNDES.
Zero Hora teve acesso com exclusividade a contratos problemáticos assinados pelo Badesul à época em que era presidido pelo engenheiro mecânico e mestre em Engenharia de Produção Marcelo Lopes: o dos R$ 50 milhões para a Wind Power e outro da Iesa Óleo e Gás S/A, que entraram com pedido de recuperação judicial meses depois de receberem valores do banco.
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Considerando os encargos contratuais, a Wind Power deve ao banco de fomento gaúcho a quantia de R$ 75 milhões. Pela correção prevista na recuperação judicial, a dívida é de R$ 52 milhões.
Empréstimo foi concedido com base em salvaguarda de "recebíveis" incertos
Um dos principais equívocos no caso do empréstimo à Wind Power ocorreu na questão das garantias. A cédula de crédito bancário registra que a empresa se limitou a dizer que as garantias oferecidas ao Badesul eram "recebíveis" futuros dos contratos não especificados para fornecimento de aerogeradores a parques eólicos. Pela lógica do mercado bancário, os recebíveis até podem ser aceitos como garantia, desde que haja algum contrato assinado e especificado, previsão de geração de receita líquida e certa de longo prazo ou sucesso em uma licitação de fornecimento de insumos ou energia ao governo federal.
A Wind Power não especificou se contava com esses requisitos. Ofereceu receitas futuras que eram incertas, já que não tinha sequer começado a obra da sua fábrica, que nunca saiu do papel.
Para um empréstimo de R$ 50 milhões, as boas práticas do mercado determinariam a apresentação de garantias de pelo menos R$ 65 milhões, o que equivale a 130% do montante concedido. Na prática, o Badesul se contentou com a promessa de garantia frágil. E o risco se confirmou meses depois: a Wind Power se beneficiou de R$ 50 milhões, não fez os investimentos na fábrica, jamais executou contratos de fornecimento de equipamentos de aerogeradores na planta gaúcha e deixou um prejuízo milionário com o banco.
No primeiro aditamento ao contrato, assinado em 26 de agosto de 2013, a controladora da Wind Power se apresenta como "responsável solidária" pelo cumprimento das obrigações da sua subsidiária.
Uma sinalização de que não haveria calote. A controladora estava ali para dar suporte. Trata-se da Indústria Metalúrgica Pescarmona (Impsa), com sede na Argentina. A carta de fiança indicou que o responsável pela liquidação dos débitos junto ao Badesul era o proprietário da Impsa, o argentino Luis Enrique Pescarmona, que, pelos documentos apensados no processo de crédito, reside no Leblon, no Rio de Janeiro. A inclusão da Impsa como responsável, até agora, não resultou em nada para o Badesul. A carta de fiança foi feita com regras da Argentina e a execução contra a empresa não avança. O Banco Central, recentemente, intimou o Badesul a explicar as operações com a Iesa e a Wind Power. No caso específico da empresa de aerogeradores argentina, o Banco Central reproduziu um trecho da análise de crédito da Impsa feita no próprio Badesul – o documento chama-se Considerações Gerais da Avaliação de Risco Cliente, de 20 de novembro de 2012. Embora a empresa tenha sido considerada fragilizada, o Badesul classificou a Wind Power na categoria "bom".
"A expansão das suas atividades foi alavancada com recursos financeiros onerosos, especialmente de bancos oficiais brasileiros. Possui situação econômico-financeira e estrutura de capitais, aparentemente, não satisfatória em consequência dos altos investimentos efetuados, sem capacidade financeira apropriada de recursos próprios. Vem sofrendo dificuldades na solvência dos seus compromissos financeiros, dado o desequilíbrio do seu fluxo de caixa. (...) Dada a dependência dos recursos financeiros onerosos, a viabilidade do grupo está refém dos principais bancos credores", dizem trechos da análise de risco do próprio Badesul sobre a Impsa/Wind Power.
Ainda assim, depois de identificar e registrar uma série de riscos da operação, o banco gaúcho emprestou R$ 50 milhões com garantias fragilizadas. O Banco Central, no documento em que intimou e pediu explicações, avaliou o cenário e a carta de fiança em que a Impsa se apresentou como responsável para quitar o passivo. "Essa carta de fiança foi registrada na Argentina, portanto, a sua exequibilidade é regida pelas leis daquele país. Por essa razão, o Badesul teve, posteriormente, que contratar escritório de direito empresarial internacional para representá-lo na execução da fiança. Apesar das considerações expostas, foi atribuído o conceito bom ao risco cliente e da operação, e o relatório de análise foi encerrado com considerações a respeito da importância do empreendimento para o Estado do Rio Grande do Sul", diz trecho do documento do Banco Central. Pescarmona também se comprometeu a depositar valores em uma conta no Banrisul a título de garantia, mas não cumpriu o acordo.
Valores liberados em parcela única para
empresa sem relacionamento com o banco
Os problemas não param por aí. Os R$ 50 milhões foram liberados à Wind Power em apenas um tranche, ou seja, em uma tacada só. Em geral, os bancos diluem os financiamentos em parcelas que somente são liberadas quando vistorias de medição indicam que os investimentos no projeto estão sendo feitos. Se a execução avança, observados um cronograma e outros critérios, nova fatia do crédito é liberada. Isso ajuda a mitigar fracassos. Mais uma vez, a regra geral do mercado foi flexibilizada com a adoção do tranche único, sem medição periódica de execução da construção da fábrica.
A Wind Power jamais havia tido qualquer relacionamento com o Badesul. Também por isso, a primeira experiência deveria ser mais parcimoniosa, mas a direção do banco atuou com tranche único e alto volume de operação, com concentração de R$ 50 milhões – cifra demasiada para os padrões do Badesul – em um só cliente. Além disso, a verba repassada à Wind Power era de uma linha de crédito do BNDES para capital de giro, considerada uma das mais arriscadas para quem empresta.
A Impsa é conhecida no mercado brasileiro. O grupo tinha operação – foi decretada falência – no Porto de Suape, em Pernambuco, e foi citado na delação premiada do senador cassado Delcídio Amaral (MS) como suposto participante do esquema de propinas de empresas que atuam nas obras da usina hidrelétrica de Belo Monte.
"Delcídio do Amaral sabe que existiu uma forte disputa em relação ao fornecimento dos equipamentos de Belo Monte, envolvendo, de um lado, os chineses (patrocinados por Bumlai), e de outro lado, os fabricantes nacionais (Alstom, Siemens, Impsa e Iesa). O triunvirato (que seria integrado por Silas Rondeau, Erenice Guerra e Antonio Palocci) agiu rapidamente, definindo que o fornecimento dos equipamentos seria realizado pelos fabricantes 'nacionais', tudo na busca da contrapartida, revelada nas contribuições de campanha. Delcídio recorda-se da influência direta do ex-governador Eduardo Campos a favor, especificamente, da Impsa. De todos os concorrentes, a Impsa era a única com cadeira cativa. Delcídio acredita que a contratação de equipamentos girou entre R$ 15 milhões e R$ 20 milhões de contribuições ilícitas para as campanhas do PMDB e do PT", diz trecho da delação assinada com o Ministério Público Federal, no curso da Operação Lava-Jato.
Até hoje, o Badesul nem sequer conseguiu intimar o argentino Luis Enrique Pescarmona para lhe cobrar uma solução à dívida deixada pelo seu grupo. Ele não é encontrado.
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PASSO A PASSO DA DECADÊNCIA
- Em julho de 2014, o Tribunal de Contas do Estado (TCE), em auditoria ordinária no Badesul, pediu acesso a 55 operações do banco por meio da "Requisição 09/2014".
- O objetivo era verificar os critérios de concessão de crédito. Algumas dessas medidas foram tomadas após pedidos de providência do deputado estadual Marlon Santos (PDT). Em 2014, o TCE teve as solicitações negadas sob alegação do sigilo bancário.
- Ainda assim, abriu o processo 9607-0200/13-5, inicialmente baseado em análise de balanços da agência. Os apontamentos (veja abaixo) já indicavam o processo de deterioração financeira. Com o ingresso da atual diretoria em maio de 2015, o TCE passou a ter acesso aos documentos antes negados.
- Uma inspeção extraordinária foi aberta para analisar exclusivamente os casos da Iesa e da Wind Power. O relator do caso, que tramita em sigilo, é o conselheiro Iradir Pietroski. O Banco Central também abriu apurações acerca das duas negociações.
Veja algumas das informações que constam no relatório de auditoria ordinária do TCE nas contas do Badesul no exercício de 2013
- Faz referência ao forte crescimento do saldo da carteira de operações. Em apenas dois anos, o volume mais do que duplicou (104,7%). "Este tipo de ocorrência é atípica no mercado financeiro, por insustentável no médio prazo. Normalmente, o que se verifica são carteiras de crédito com taxas de crescimento estáveis e moderadas", registra o parecer.
- "No mesmo período em que se observou um crescimento vertiginoso da carteira de crédito do Badesul, o nível proporcional de provisionamento para perdas prováveis na realização de créditos (PCLD, que significa uma reserva para eventuais calotes), foi reduzido em 20,7%, de 3,2% da carteira no final de 2011 para 2,6% da carteira no final de 2013."
- "Restou óbvia a redução da proporção das operações menos arriscadas na carteira da agência de fomento. As operações mais seguras, as AA, eram 31,7% do saldo da carteira no final de 2011, e apenas 19,7% no final de 2013, uma queda de 37,9%. Cresceram as operações de risco.
As operações 'b ou pior' eram 23,1% do saldo da carteira no final de 2011 e passaram para 42,1% no final de 2013, elevação de 82,2%."
- Diz ainda o relatório: "Cruzando o incremento das operações mais arriscadas na carteira de crédito com a demonstrada redução de 20,7% no nível proporcional de provisionamento para perdas prováveis na realização de créditos, ficou entabulada uma marcante contradição, podendo significar que a instituição financeira pública está subestimando o nível de risco de sua carteira de crédito".
- "No final de 2011, as operações "B ou pior" tinham saldo de R$ 389,351 mil ou 69,7% do patrimônio líquido de R$ 558,395 mil do Badesul. Já no final de 2013, o saldo das operações 'B ou pior' era R$ 1.451,826 mil ou 198,2% do patrimônio líquido de R$ 732,290 mil do Badesul. Ou seja, se metade dessas operações 'B ou pior' desse perdas efetivas, o patrimônio líquido do Badesul estaria completamente liquidado", acrescenta o relatório da auditoria promovida pela área técnica do TCE.
CONTRAPONTOS
O que diz a IESA
A reportagem de Zero Hora enviou e-mail, na última sexta-feira, com questionamentos sobre os contratos com o Badesul para a assessoria de imprensa da Iesa. Até a noite deste domingo, a empresa não havia retornado o contato.
O que diz a Wind Power
ZH também enviou e-mail, na sexta-feira, com questionamentos para o setor de comunicação da Impsa, empresa argentina controladora da Wind Power. Até a noite de domingo, a reportagem não havia recebido retorno.