Em grande parte da Europa continental, a crise do euro conseguiu, em apenas alguns anos, o que os partidos políticos na Inglaterra e Estados Unidos vêm tentando fazer há décadas: diminuir o tamanho do governo.
Talvez isso seja ainda mais verdadeiro aqui em Portugal. Desde o início da crise, o governo se desfez de ativos como a empresa de gestão de aeroportos de Portugal, uma operadora de estradas e o serviço postal nacional.
Mas, quando uma coleção de obras do artista catalão Joan Miró foi posta à venda, muitos acharam que tudo tinha ido longe demais. O anúncio do governo de que a coleção seria vendida pela Christie's, casa de leilões em Londres, desencadeou uma intensa discussão sobre que tipo de ativos o estado deveria poder vender, e se o patrimônio cultural da nação ficaria fora desse limite.
Agora, a controvérsia em Portugal tornou-se parte de um debate mais amplo pelo sul da Europa, sobre as virtudes e limites da diminuição de um governo. O foco é na preservação pública ou privatização de patrimônios culturais que tocam na ferida da identidade nacional.
- A obsessão com eliminar tudo que é público está levando o governo a seguir ainda mais o caminho da privatização, e talvez quadros sejam considerados parte da mesma estratégia. Mas mesmo na cidade americana de Detroit, que declarou falência, a decisão final foi não vender nenhuma obra de arte, afirmou Gabriela Canavilhas, deputada socialista e ex-ministra da cultura de Portugal.
Canavilhas está entre os que buscam ações jurídicas para impedir a venda das obras e classificá-las como patrimônio nacional. A questão foi discutida no Parlamento em março sem nenhuma conclusão.
Em meio ao clamor inicial, a Christie's cancelou o leilão em fevereiro, citando preocupações legais sobre se Portugal teria o direito de vender as obras. A casa de leilões declarou que a venda seria conduzida em junho, embora os problemas com a medida do governo ainda perdure. Esses acontecimentos geraram discussões parecidas em outros locais.
A Grécia possui o programa mais ambicioso de privatização, incluindo a venda pendente de sua companhia de gás e propriedades em ilhas, e se comprometeu a vender ativos no valor de 11 bilhões de euros até o fim de 2015, para reduzir suas dívidas e pagar credores. Porém, mesmo esses planos foram reduzidos em meio a transações mal feitas e problemas de má gestão.
Uma recente decisão do governo grego, de vender algumas propriedades abaixo da Acrópole, provocou uma feroz reação de críticos - que argumentaram que, em vez de privatizar o distrito histórico no coração de Atenas, as autoridades deveriam preservá-lo como algo que pertence a todos os gregos.
Na Espanha, a mera sugestão de que teatros estatais em Madri seriam vendidos gerou protestos nas ruas, conduzidos por atores e outros temerosos do efeito disso sobre as artes. E na Itália, o debate cultural tem se concentrado mais no fracasso do governo em investir e proteger locais históricos como Pompeia.
Em Portugal, críticos afirmam que a crise econômica tem sido usada para justificar o tipo de medida política que já remodelou economias em lugares como Estados Unidos e Inglaterra, desde a era de Ronald Reagan e Margaret Thatcher: vender ativos e subcontratar ou terceirizar serviços estatais. Portugal já vendeu cerca de US$11 bilhões em ativos.
Embora essas medidas nem sempre tenham gerado a economia prometida por seus proponentes, os governos na Europa, onde o setor estatal assume uma parte da economia maior do que nos EUA, aceitaram tardiamente a ideia da privatização, dizendo que a crise financeira lhes deixou pouca escolha.
A recessão econômica pode estar se atenuando em alguns países da zona do euro, mas os encargos da dívida que precipitaram a crise mostram poucos sinais de melhora. Em alguns casos eles ficaram ainda piores, conforme a receita fiscal não se recupera em meio a níveis paralisantes de desemprego e crescimento anêmico.
Tentando equilibrar suas contas, o governo de Portugal (uma coalizão de centro-direita) já realizou profundos cortes de gastos nos serviços sociais - incluindo programas de ensino e assistência social - para cumprir os termos de um resgate internacional negociado em 2011.
Políticos socialistas da oposição estão lutando para colocar um limite na coleção de Miró.
As obras caíram nas mãos do estado português em 2008, quando o governo foi forçado a assumir o controle do Banco Português de Negócios, ou BPN, um banco incapacitado por dívidas e irregularidades de gestão. A Parvalorem, uma holding estatal, quer vender a coleção para ajudar a cobrir os custos desse resgate.
Em 2008, o BPN tentou negociar a venda das obras de Miró com um comprador americano.
- O governo está apenas tentando concluir o que já estava planejado quando o banco estava em mãos privadas. O contribuinte deve pagar o mínimo possível pelo resgate do banco, disse ele., explicou Michael Seufert, um deputado conservador.
Segundo opositores, os cerca de US$50 milhões que o governo espera conseguir com o leilão são quase irrelevantes se comparados ao fardo financeiro total do país, ou ao custo do resgate internacional, de US$110 bilhões - mais de 2.000 vezes a quantia a ser obtida com a venda das obras de Miró.
- A única coisa boa do BPN é que eles ao menos trouxeram alguma arte para Portugal. Estamos em dificuldades econômicas, muitos ativos estatais podem ser vendidos, mas existem limites - e manter esses quadros faz parte de nossa dignidade, argumentou Álvaro Beleza, membro do Partido Socialista.
Mesmo se o leilão for adiante, Carlos Cabral Nunes, dono de galeria que vem fazendo campanha para manter as obras de Miró em Portugal, afirmou que o debate sobre o leilão mostrou que as autoridades não podem lidar com a arte como se ninguém se importasse.
Cabral Nunes também citou Detroit como exemplo. Fundações de caridade vêm levantando fundos para proteger as obras de arte da cidade e, em janeiro, um juiz bloqueou uma tentativa de credores de avaliar a coleção do Detroit Institute of Arts como parte do processo de falência da cidade.
- Ao vender algo como a companhia elétrica ou o serviço postal, você vende a propriedade, mas os serviços continuam aqui e disponíveis aos cidadãos. Ao leiloar obras de arte, você garante que ninguém em Portugal jamais se beneficiará com isso. E isso é uma destruição irreparável de nosso patrimônio, disse Cabral Nunes.
Arte
Venda de obras de arte gera debate sobre privatização em Portugal
O anúncio do governo de que a coleção do artista catalão Joan Miró seria vendida por uma casa de leilões desencadeou uma intensa discussão sobre que tipo de ativos o estado deveria poder vender
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