Letícia Camargo é expert em uma área na qual o brasileiro médio tende a ser um zero à esquerda. Enquanto mais da metade da população diz ser avessa a cuidar das finanças pessoais, a planejadora financeira acredita que mudar essa realidade é fundamental para reduzir o cenário alarmante de inadimplência em que a crise econômica deixa o país.
– As pessoas precisam se organizar para guardar uma reserva de emergência que comporte de três a 12 vezes seu gasto mensal – recomenda.
O que ocorre é o contrário: sem cuidar dos gastos e sem conhecimento preciso de sua renda líquida, o brasileiro, avesso ao planejamento, conta com a sorte.
– Outro dia uma pessoa falou que não é bom pensar em se precaver porque você atrai as coisas ruins. Mas se não estiver preparado, vai deixar passar as coisas boas também: aquela senhora vendendo um carro que está há cinco anos guardado, zerado. É uma oportunidade, mas para aproveitar tem de ter o dinheiro – pondera.
Entrevistada recorrente de programas importantes da imprensa nacional e embaixadora da Planejar (Associação Brasileira de Planejadores Financeiros), Letícia fala a seguir sobre tropeços do comportamento financeiro e de como pequenas mudanças de hábito podem fazer uma grande diferença no bolso e na saúde.
O brasileiro é um povo endividado por uma questão de comportamento ou os recordes de inadimplência são um reflexo do quadro de crise que o país atravessa?
O aumento na inadimplência, em parte, é causado pela crise. Mas há outra questão importante: por décadas, o Brasil teve taxa de inflação muito alta. No dia em que a pessoa recebia o salário, tinha de correr para o supermercado, consumir rapidamente, para que o dinheiro não perdesse valor. Assim, o brasileiro se acostumou a consumir sem pensar muito, a comprar por impulso para poder se proteger, não tem a cultura de planejamento, de aguardar agora, deixando o dinheiro crescer.
Não se trata, então, de um problema restrito a um ou outro grupo social?
Todas as classes se endividam – se pensar que até o Michael Jackson morreu endividado... Mas há perfis. A Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais) fez uma pesquisa extensa sobre como brasileiros lidam com dinheiro. Dividiram em cinco perfis: camaleão, planejador, construtor, sonhador e despreocupado, que é aquele “deixa a vida me levar”. Normalmente, esse desorganizado é o que vai ficar endividado, vai gastar comprando o carro novo e, só depois, ver como pagar. O planejador dificilmente vai estar endividado, vai preferir sempre pagar à vista. O camaleão, se tem dinheiro, gasta, se não tem, vive numa situação mais tranquila, gasta menos. Em geral, as pessoas mais extrovertidas e impulsivas são as que ficam mais endividadas. Uma pessoa bagunçada em casa também o é nas finanças.
Por décadas, o Brasil teve inflação alta. O brasileiro se acostumou a consumir sem pensar muito para se proteger.
LETÍCIA CAMARGO
É mais complicado lidar com o dinheiro hoje do que em gerações passadas?
De certo modo, sim, os produtos financeiros estão mais complexos e há muitas opções no mercado. Contas em banco, vários tipos de investimento, opções de seguro, as fintechs (startups inovadoras do mercado financeiro, como os bancos digitais que não cobram tarifas). De qualquer forma, o importante é a pessoa saber qual seu rendimento líquido para nunca gastar mais do que pode.
O quanto se entra no vermelho por comportamentos bobos? Como agir na hora de rever que tipo de serviço e atividade pode ser deixado de lado?
Costumo falar que há dois tipos de endividado. O que se endividou por uma situação fortuita, ficou doente, perdeu o emprego. Essa pessoa se endividou, conseguiu emprego ou resolveu a doença – pronto, provavelmente vá conseguir se organizar. O problema é quando se gasta mais do que se ganha de forma recorrente, por descuido, descontrole, no clima “deixa a vida me levar”. Aí é mais complicado: vai ter de ter mudança de hábito, ajustar a vida para que caiba no orçamento. Porque o contrário (ajustar o orçamento para comportar os hábitos de vida), não é simples, embora haja quem consiga, fazendo hora extra, mais visitas de vendas, no caso de vendedores. Ou faz uma combinação dos dois: trabalha durante a semana e busca uma renda extra no final de semana, vendendo cupcakes, dando aulas de algo que entenda.
Quais são os vilões dos gastos?
Um problema comum são os gastos supérfluos, os picadinhos que você perde a noção. Tem gente que, a cada coisa que acaba em casa, vai na lojinha de posto de gasolina mais próxima. Que sai do trabalho e passa ali para fazer umas comprinhas. Esses lugares são infinitamente mais caros do que os supermercados. Essas coisinhas baratas que, somadas, dão um grande valor. Não gosto de chamar de vilãs, porque cada um tem de gastar o seu dinheiro naquilo que lhe é importante. Gastar R$ 1 mil comendo em restaurantes é muito ou pouco? Depende, se é importante para você e você tem como pagar, talvez seja pouco.
Estar inadimplente representa um peso por vezes paralisante. Como preparar a mente para sair dessa situação?
Podemos fazer a analogia com a pessoa que estava sedentária e quer ficar saudável. No começo, vai ser difícil, dolorido. No primeiro dia na academia, quase morre, no primeiro mês ainda sente dor, mas depois vê como é legal quando começa a fazer efeito, “Estou com mais fôlego, dormindo melhor.” E tem de haver a mudança de hábito, não adianta só se matricular na academia, tem de acordar cedo, ir na chuva. Não adianta pensar “Ah, estou devendo, quero me organizar”, e quando consigo negociar o juro menor, continuo gastando do mesmo jeito. Vou dormir mais tranquila, deixar de ter problema em casa, porque a pessoa endividada fica doente, estressada, briga com a família. Voltar a ter essa tranquilidade financeira é o retorno.