Pouco antes das 8h da manhã, a enfermeira Sandra Stawinski abre a porta de casa, no bairro São José, em Canoas, e encontra o marido Edson Bernardi já pronto para sair para o trabalho. Ela acaba de encerrar um plantão de 12 horas em um hospital de Porto Alegre e está indo dormir. Já o companheiro, que é químico e funcionário do Estado, só voltará para casa no meio da tarde.
O casal se apaixonou em 2006, em uma sala de bate-papo do Terra, e poucos meses depois passou a morar junto e constituiu uma família. A vida em turnos trocados começou há sete anos, quando Sandra assumiu o turno da madrugada na escala "trabalha 12h x descansa 36h". Nessa dinâmica, é preciso uma organização diária para manter a casa em ordem, atender às demandas das duas filhas — Cecília, de 14 anos, e Letícia, de 11 — e se manterem conectados enquanto cônjuges.
"O período sem o outro é importante porque você consegue fazer as suas coisas e seguir suas vontades"
SANDRA STAWINSKI
Enfermeira
As conversas mais importantes ocorrem no período da tarde, quando ele retorna do trabalho, ou nas manhãs do final de semana, quando as meninas ainda estão dormindo.
— Não temos uma organização para a semana, vamos combinando dia a dia quem vai buscar e levar as meninas na escola, ir ao mercado, se vamos conseguir dar uma saída, numa semana mais folgada. Às vezes combinamos "nesse fíndi, eu não vou trabalhar no sábado e elas têm uma festinha com as colegas, então vamos sair só nós" — explica a enfermeira de 51 anos.
Para os casais com rotinas convencionais, pode soar estranha a ideia de não dormirem na mesma cama todas as noites e não fazer algumas refeições juntos, mas Sandra e Edson garantem que funciona para eles, tornando-se natural com o passar dos anos. E, embora os desencontros sejam frequentes, os momentos a dois são mais valorizados.
— Sempre nos demos muito bem, então a questão de estar fora uma noite sim, outra não, funciona para nós. O período sem o outro é importante porque você consegue fazer as suas coisas e seguir suas vontades — afirma Sandra.
— Sim, às vezes você precisa ficar sozinho. E é bem na medida certa, porque é uma noite só, na próxima já vamos estar juntos de novo — complementa Edson, de 48 anos.
Reconhecer os próprios limites
Passar um tempo de qualidade consigo mesmo é uma das chaves para que a relação siga forte e enriquecedora, incentiva a psicóloga especialista em tratamento conjugal Márcia Pettenon, principalmente para casais com horários desencontrados. É sobre separar um tempinho para fazer as coisas de que gosta, assistir uma série de sua preferência — não do casal — ou dar um passeio.
— Antes de pensar no casal, o indivíduo precisa ter respeito consigo e suas necessidades, se sentir nutrido emocionalmente pela convicção de que "eu fiz algo somente por mim", ativei uma energia egoísta que me fortalece. E aí, num segundo momento, ele vai ter esse tempo de qualidade com seu cônjuge. É a premissa básica do "primeiro eu", pois quando me respeito e reconheço meus limites, automaticamente farei isso com os outros também, especialmente com os próximos — explica Márcia.
Cumplicidade e qualidade
Até seis dias por semana, os pilotos de avião Larissa Bernardo e Guilherme Germano Rabusky podem ficar sem se ver e sem colocar os pés dentro da casa onde moram, em Campinas, São Paulo. Além disso, no comando de uma aeronave, o celular fica desligado por horas, de forma que não estão disponíveis um para o outro o tempo inteiro. Nessa ausência, é a cumplicidade e a autonomia que tomam a frente.
"Quando estamos juntos, estamos realmente presentes"
GUILHERME GERMANO RABUSKY
Piloto de avião
— Precisamos ser muito independentes emocionalmente e ter autonomia nas decisões. Nossa casa precisa funcionar independentemente de quem esteja, as coisas têm que ser feitas. Ele precisa, às vezes, tomar decisões por mim, e eu por ele, e está tudo bem. Ter alguém com quem dá para contar de olhos fechados suaviza o desgaste emocional da distância que a profissão impõe. Temos formas de amar muito parecidas — diz a piloto de 37 anos.
Saber do que o companheiro(a) gosta e confiar nas suas decisões é o que funciona para o casal, que está junto desde 2019. O matrimônio dá direito a algumas folgas casadas, que ajudam a amenizar o tempo separados.
— Um dos pontos positivos da aviação para mim é não levar trabalho para casa e poder aproveitar o tempo com a minha esposa com qualidade. Claro que cada um tem as suas atividades durante os períodos de folga, porém quando estamos juntos estamos realmente presentes naquele momento — afirma Guilherme, de 36 anos.
Sim, pode ser que eles percam datas importantes como Natais, casamentos e formaturas, já que a escala de voos é divulgada apenas mês a mês, o que limita o planejamento prévio. Também ocorre de não conseguirem estar presentes em momentos especiais ou difíceis um do outro. É o preço que pagam para exercer a profissão que amam, com a tranquilidade de estar ao lado de alguém que aceita as exigências do ofício.
— Tenho muito orgulho do profissional que o Gui é, e, apesar de a nossa rotina ser diferente da maioria, é muito bom, para mim, enquanto mulher, ter alguém que entende como funciona a minha dinâmica, em um ambiente majoritariamente masculino e complexo. Temos muitas trocas e crescemos juntos pessoal e profissionalmente. As viagens e experiências que a profissão nos proporciona são incríveis e poder viver isso com ele é impagável — conta Larissa.
Uma dica da psicóloga Márcia Pettenon, especialmente para os casais que estão se vendo, agora, diante do desafio de trabalhar em turnos diferentes é dialogar e combinar as coisas de antemão, dando atenção especial para os momentos reservados para estarem juntos de forma mais romântica, como casal.
— Às vezes, os casais se sentem engolfados por uma rotina muito densa, e aí ao invés de pensar no espaço do casal como um lugar prazeroso, reconfortante, eles colocam automaticamente na caixinha do dever, de uma energia trabalhosa. O legal é que seja um combinado, não só deixar acontecer ao acaso, planejar juntos a rotina, como ela vai acontecer, o que fazem em quais dias e horários. Isso os ajuda a priorizar o tempo do encontro deles, e também o da conexão com os filhos e consigo mesmos — detalha a psicóloga.
Atacando em todas as frentes
Amor não basta. Para a dinâmica da família fluir, é indispensável ser um time e "jogar nas 11", explica o químico Edson Bernardi, pegando emprestado a expressão do futebol utilizada para definir um jogador que tem qualificação para jogar em todas as posições. Em casa, isso quer dizer que os dois fazem de tudo: cozinham, limpam a casa, cuidam das meninas, lavam as roupas. A divisão na família Stawinski-Bernardi é só para algumas atividades relacionadas às filhas, como, por exemplo, a ajuda com os estudos, que fica a cargo do pai, e as idas ao shopping, que costumam ser com a mãe.
— Uma coisa muito boa é que não tem essa coisa de "isso é só comigo", "x coisa é só contigo", não — salienta Sandra.
— Se tem alguma coisa que um não faz, vai ter que aprender a fazer porque em algum momento aquilo vai ficar sob sua responsabilidade. E se ficar sobrecarregando o outro, pode ir minando a relação — complementa o marido.
Ser um time bem afinado também conta muito para quem tem filhos, mas não tem o privilégio de tomar decisões sempre juntos por conta dos turnos trocados. Nos momentos em que o cônjuge está dormindo, é importante permitir que o companheiro descanse e conseguir orientar os filhos com a confiança de que as informações estão de acordo com os valores do casal.
— É importante os pais terem diretrizes semelhantes, porque não adianta perguntar para a mãe ou tentar persuadir o pai para ver se ele deixa fazer tal coisa, pois a resposta vai ser a mesma. Isso porque existe uma coerência no diálogo familiar, os pais comungam dos mesmos valores — conclui a psicóloga.