No primeiro curso de churrasco ministrado por Clarice Chwartzmann, 58 anos, em uma sala repleta de mulheres, a assadora profissional decidiu quebrar com o que geralmente se espera do comandante da churrasqueira: deixou de lado o grosso avental de couro e apostou num salto alto, vestido e unhas coloridas.
— Eu estava com essa reflexão de que "só porque eu faço churrasco, não significa que eu tenho de ter um visual masculino". Não, eu sou uma mulher, estou aqui à frente de uma churrasqueira, não tenho preconceito algum e quero que você também não tenha — relembra.
Às vezes é assim, com um simbólico pé na porta que se começa a abrir caminhos. É o que a publicitária de Passo Fundo vem fazendo desde 2014 com a criação da marca A Churrasqueira, com a qual se dedica a ensinar exclusivamente mulheres sobre os segredos de um bom assado e os prazeres ancestrais das comunhões ao redor do fogo. Neste mês de Festejos Farroupilhas, Donna conversa com uma mulher que tem construído a carreira em um meio tradicionalmente masculino.
A vontade de dar um novo rumo para a profissão veio para Clarice logo antes de completar 50 anos. Até então, a dedicação da gaúcha havia sido à comunicação e à produção cultural, cultivando uma carreira extensa no Rio de Janeiro e em Salvador — por lá, trabalhou com artistas como Margareth Menezes, Barão Vermelho, Simone, Djavan e outros. No Rio Grande do Sul, envolveu-se com Porto Alegre em Cena, Complexo Multipalco e diversos projetos independentes.
— Percebi que produção cultural não era mais o que eu queria fazer naquele momento. Aos 49 anos, eu pensava: "Poxa, não me sinto identificada pelo que faço, não diz mais respeito ao que sinto e a como eu me vejo" — explica.
Em um mergulho interno, Clarice percebeu um padrão. Fosse nas viagens para o Exterior, nas passagens por outros Estados ou junto de colegas de trabalho, o churrasco sempre estava lá, uma constante na sua vida. Tudo começou na cidade natal, no norte do Estado, onde foi criada até os 15 anos junto das três irmãs por um casal de pais judeus apaixonados por cozinhar, assar e reunir os amigos no pátio de casa para um churrasco. O envolvimento da menina com a churrasqueira começou de forma lúdica, observando o pai assar e recebendo dele as lasquinhas de carne na boca.
— A coisa se tornou mais "mão na massa" quando saí de Passo Fundo. Onde quer que eu morasse, sempre queria fazer churrasco para reunir as pessoas, criar um vínculo, mostrar de onde eu vim. Mais tarde, nas minhas conversas internas, percebi que na minha família, dentre meus amigos e colegas de trabalho, eu era a única mulher que fazia isso. Surgiu a pergunta: "Por que que as mulheres não fazem churrasco?" e a partir disso, minha reação foi: "Eu vou ensiná-las a fazer" — conta ela.
Já passaram por seus cursos mais de 2 mil alunas. Além de aulas, Clarice palestra, assa e faz a curadoria de eventos gastronômicos brasileiros. Na TV, já exibiu seu métier no Saia Justa, Mais Você, Tempero de Família e, em 2021, foi uma das juradas do reality É de Casa na Brasa, da Globo. No ano passado, a chef foi uma das idealizadoras do projeto Porto Alegre Capital do Churrasco. Atualmente, também é colunista do caderno Destemperados e curadora do projeto Churras no Cais.
Entrevista com Clarice Chwartzmann
A sua vida é marcada por movimentos, de país, cidade e carreira. O que te motiva?
Tenho facilidade em me comunicar e encarei de frente todas as oportunidades que caíram no meu colo. Acho que isso tem a ver com duas mensagens passadas pelos meus pais, sobre ter coragem para enfrentar as coisas e ir adiante. Minha mãe, que foi uma mulher à frente do seu tempo, sempre disse: "Nunca dependam de ninguém" e o meu pai dizia "façam de conta que a vida é um sutiã e metam os peitos".
Existe um comportamento cultural em que as mulheres que fazem churrasco entram "dentro de um armário"
CLARICE CHWARTZMANN
Assadora profissional
Ser assim exige desapego, não é?
É um exercício complexo porque eu sempre sou projetada para frente, me lanço, e aí vou resolvendo esses desapegos no meio do caminho. Dá uma dorzinha, mas eu sigo sempre olhando em frente. Eu vivi várias vidas em uma só e sim, cansa, mas eu sou movida a causas e a desafios. Eu preciso de desafios para me sentir viva, não consigo estagnar.
Qual é o seu olhar sobre o churrasco?
Meu olhar para esse tema tem 360 graus. O churrasco como comida é uma das camadas, mas existe toda uma questão cultural, de comportamento, de relação social e de gênero. Além disso, eu represento toda uma cadeia produtiva que começou lá no campo, há muito investimento lá atrás, então quando pego na mão um insumo de qualidade, sou obrigada a entregar algo de qualidade também.
Por que ainda não é comum ver mulheres assando carne?
É uma história complexa, o churrasco significa algo muito mais transcendental para a gente do que imaginamos, diz respeito aos banquetes que vivemos quando aprendemos a caçar, fazer fogueira e nos protegermos dos predadores. Os homens saíam para caçar e as mulheres atuavam como as guardiãs do fogo. Mas com o tempo, a mulher acabou sendo relegada à coadjuvante na história da alimentação humana, sendo que, na prática, ela sempre foi protagonista. A gente tem uma narrativa de que mulheres servem para fazer comida todo dia, mas nos banquetes, quando se torna uma experiência gastronômica, ela tem de conquistar espaço quase que esmurrando a porta, não é algo que ocorre de forma fácil. As mulheres chefs, por exemplo, demoraram para conseguir um espaço nas cozinhas profissionais. O mesmo ocorre com as mulheres churrasqueiras também.
O que descobriu sobre as mulheres quando começou a dar aulas?
Quando lancei o primeiro curso, me dei conta de que estava lidando com algo diferente, não era só o fazer churrasco e promover a representatividade da mulher. Comecei a ver que existe um comportamento cultural em que as mulheres que fazem churrasco entram "dentro de um armário". Mas quando eu trago esse assunto de uma forma mais clara, elas começam a sair e comentar "minha avó fazia", "minha tia fazia", "minha mãe faz", "lá em casa, quem faz sou eu", é algo natural. Outro fator interessante é que muitas vezes a mulher assume a churrasqueira, obviamente porque gosta e conquistou aquele espaço, mas também pela ausência do masculino.
Existe um perfil de aspirantes a assadoras?
O perfil é diverso, várias idades e realidades. Tem mulheres solteiras, casadas, separadas ou viúvas, onde passou a haver a ausência do masculino, tem as mulheres aposentadas cujos filhos não estão tão próximos. Tenho alunas de 80 anos que querem aprender a fazer churrasco para reunir as amigas.
Churrasco pode ser um ponto de tensão na relação afetiva?
Ah, muitas mulheres se perguntam: "Poxa vida, como é que eu vou fazer na minha casa, meu marido passa demais a carne, deixa queimar, vou ter de me meter... e aí, como é que vai ser? Será que vai motivar uma crise? Como é que vamos organizar, ele faz num domingo, eu faço no outro?". E são essas provocações que me interessaram nesse ramo. Vamos lá, vamos mexer nisso porque é super simbólico. O churrasco é o coroamento da semana e quem faz é o homem. Então a mulher está ali só para atender no dia a dia?
Qual é o seu propósito com essa atividade?
É resgatar esses lugares ao redor do fogo, alimentando com fogo vivo e dando protagonismo para as mulheres. E esse protagonismo mexe com várias questões culturais, com uma hierarquia entre homens e mulheres. Eu não quero ser melhor do que os homens, mas quero ser igual. E nesse campo aqui, muitas vezes naturalmente, algumas mulheres se saem melhor, porque nem todos os homens que fazem churrasco gostam de fazer ou sabem fazer. Tem muitos homens que não gostam. E aí tem muitas mulheres que me procuram justamente por isso, "meu marido não curte assar, então vim aprender".
Há muito preconceito nesse meio?
Em 2015, quando fui para dentro do Acampamento Farroupilha assar um churrasco num piquete, o patrão olhou para mim e disse: "Mas o que essa mulher tá fazendo aqui?". Hoje está um pouco diferente, tanto pelo que eu já trilhei quanto por haver outras assadoras nesse mesmo movimento que eu, mas ainda enfrentamos machismo. E como o Estado está despertando para as possibilidades do churrasco e se tornando mais competitivo, e é uma cultura em que os homens são os protagonistas, ele acaba se tornando hoje um mercado mais machista do que era antes, por incrível que pareça. Mas o mais importante é que existe um movimento das mulheres para serem protagonistas nesse lugar também. Algumas que admiro, para citar duas, são Paula Labaki, uma baita assadora, e Priscila Deus, que é a chefe do Pobre Juan.
Você se realiza nessa profissão?
É uma profissão desafiadora para caramba, há uma troca muito intensa com esse fogo vivo, sempre digo que é preciso "ter corpo fechado" para trabalhar com ele. Eu estou fazendo algo que amo, ensinar é uma paixão, mas preciso de cuidados, tenho marcas de fogo, vou fazer 60 anos daqui a pouco e não posso levantar muito peso. Então é uma profissão que me desafia diariamente a me reinventar.