O 51º Festival de Cinema de Gramado ficará marcado como a primeira edição em que todos os troféus de homenagem foram entregues a mulheres. Entre 11 e 19 de agosto, o Palácio dos Festivais leva a produtora Lucy Barreto e as atrizes Léa Garcia, Laura Cardoso, Ingrid Guimarães e Alice Braga ao palco para receberem as honrarias especiais da casa: os troféus Oscarito, Cidade de Gramado, Eduardo Abelin e Kikito de Cristal.
Segundo Rosa Helena Volk, presidente da GramadoTur, autarquia responsável pela organização do festival, a escolha das homenageadas foi feita de forma orgânica e em parceria com os curadores. O quinteto, no entanto, funciona para chamar atenção para o fato de que a dedicação e o talento femininos são partes indissociáveis da instituição cinema.
— Mulheres e homens sempre se destacaram, mas quem é do sexo masculino sempre é mais lembrado, tem mais cargos de direção e presidência. Essa foi uma opção do Festival para fazer as pessoas pensarem, reverem e reavaliarem o quanto sua força e criatividade são importantes em toda a cadeia produtiva do audiovisual. Temos todo o universo feminino representado nelas — afirma.
Esta será também a primeira vez que dois troféus Oscarito, distinção mais antiga e importante da casa, serão entregues na mesma edição. Em anos anteriores, com Glória Menezes e Tarcísio Meira (2005) e Luiz Carlos Barreto e Lucy Barreto (1999), entregou-se um por casal, mas neste, as atrizes Laura Cardoso e Léa Garcia levarão os seus individualmente.
O jornalista Marcos Santuário, que faz a curadoria do evento ao lado da cantora e atriz argentina Soledad Villamil e do ator Caio Blat, lembra que a televisão está próxima de completar 75 anos no Brasil – a primeira transmissão foi em 1950 – o que contribui ainda mais para o reconhecimento às veteranas, cujas carreiras transitam pelos filmes e novelas.
— Pensamos em valorizar esse universo televisivo que desemboca no audiovisual e no cinema como um todo. Nessa perspectiva, tornam-se ainda mais compreensíveis as homenagens para Laura e Léa, divas e atrizes maravilhosas que seguem contribuindo nessa unidade que se dá entre televisão, audiovisual e cinema — observa ele.
O curador, que durante muitos anos também cobriu o festival enquanto jornalista cultural, engrossa o coro que diz que profissionais do gênero feminino sempre estiveram envolvidas nesse meio, mas aponta que houve, sim, uma mudança social nos últimos anos.
— Há um olhar que se preocupa mais em ver a mulher, colocar uma lente sobre o seu trabalho e não fechar portas para o universo feminino. Não é que antes não houvesse o trabalho. Ao longo das décadas, as mulheres sempre estiveram à frente de direção, produção, atuação, fotografia. Mas talvez o que faltou foi ter um olhar mais afiado para colocar isso em primeiro plano. Não se pode mais negar isso — sublinha Marcos Santuário.
As homenagens serão entregues presencialmente às cinco artistas brasileiras ao longo da programação da mostra: o troféu Oscarito na terça, o Cidade de Gramado na quinta, e o Eduardo Abelin e o Kikito de Cristal, na sexta-feira.
Laura Cardoso
Com mais de sete décadas dedicadas à atuação, Laura Cardoso, 95 anos, é uma das atrizes mais reconhecidas do Brasil. Tem na conta prêmios Grande Otelo, Shell, APCA e Mário Lago. O novo trófeu em sua prateleira será o Oscarito.
— Essa homenagem é muito importante na minha carreira e esse festival é um incentivo para nós, que fazemos e amamos o cinema. Amo o Rio Grande do Sul e acho Gramado uma cidade encantada, com um povo maravilhoso e acolhedor — diz a atriz.
Ela fez sua estreia na dramaturgia em 1952, na TV Tupi. Ao longo das décadas, participou de tramas como Fera Radical (1988), Rainha da Sucata (1990) e Mulheres de Areia (1993). No cinema, seus trabalhos mais recentes são o curta-metragem Jadzia (2020) e o longa De Perto Ela Não é Normal (2020).
Sobre o protagonismo feminino na cultura, Laura diz que “a mulher sempre lutou, em todas as áreas e veículos”. Assim, haver cinco homenageadas no Festival é uma celebração desse fato:
— Reflete o trabalho reconhecido. Estou feliz por ser reconhecida no meu país.
Léa Garcia
Léa Garcia, 90, que também recebe o Oscarito, já tem quatro Kikitos pelos filmes As Filhas do Vento (2005), Hoje Tem Ragu (2008) e Acalanto (2012). Em 1957, foi indicada ao prêmio de melhor interpretação feminina no Festival de Cannes, por Orfeu Negro. Ao longo da carreira, ela vem buscando quebrar barreiras.
— A homenagem reflete o reconhecimento de uma trajetória digna e plena de amor pela arte. Contudo, faço uma reflexão: como incorporar o negro no processo produtivo da cinematografia do Brasil? Não podemos assistir cinema apenas como entretenimento, há a necessidade de promovê-lo e debatê-lo em todos os aspectos — discorre.
Léa destacou-se em novelas como Selva de Pedra (1986), Xica da Silva (1996) e O Clone (2001). No ano passado, atuou nos longas Barba, Cabelo e Bigode, Pacificado e O Pai da Rita. Sobre as mulheres no audiovisual, declara:
— A superação, o desempenho e a qualidade exercida pela mulher conferiram-lhe credibilidade e efetivação de seus direitos. E essa inclusão atende a uma visão política de um mundo melhor, mais justo e igualitário.
Ingrid Guimarães
Atriz e roteirista com mais de 35 anos de carreira, Ingrid Guimarães, 51, ganhou o Brasil fazendo o espectador rir. É uma das recordistas de bilheteria no país com filmes como a trilogia De Pernas Pro Ar (2010, 2012 e 2019). Ela entende o quinteto de homenageadas como um reflexo da evolução do papel da mulher no mundo, retratado na dramaturgia:
— Passamos de estereotipadas a originais, de coadjuvante a protagonista, porque alguma mulher colocou o pé na porta antes. Ainda precisamos de mais mulheres escrevendo, dirigindo e, principalmente, em lugares de chefia.
A atriz, atualmente, se prepara para o lançamento do longa-metragem Minha Irmã e Eu, previsto para janeiro de 2024. Esta será sua primeira vez no Festival, onde receberá o Troféu Cidade de Gramado, um carinho destinado a artistas pela contribuição ao audiovisual nacional.
— Homenagens são uma lembrança de que valeu a pena a luta e a jornada de fazer cinema no Brasil, principalmente uma comediante. É uma honra e um incentivo — celebra.
Lucy Barreto
Quem se destaca no universo técnico recebe, em Gramado, o troféu Eduardo Abelin. A honraria deste ano reconhece o talento da produtora Lucy Barreto, 90, que há seis décadas comanda a produtora L.C Barreto, ao lado do marido Luiz Carlos Barreto. O casal ganhou um Oscarito em 1999:
— Tenho uma relação muito especial com o Festival de Cinema, que frequentamos desde os anos 1970. O considero um dos mais importantes da América Latina.
A carreira de Lucy em produção teve início em O Homem das Estrelas (1971) e, nas últimas décadas, ela produziu obras como Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), Bye Bye Brasil (1980), O Quatrilho (1995), e Flores Raras (2013). A profissional se diz grata à organização da mostra gramadense pela distinção.
— O espaço da mulher na cultura está, finalmente, mais reconhecido nos dias de hoje. Confesso que nunca tive muito problema em relação a isso, mas penso que ainda é necessário evoluir — conclui.
Alice Braga
Alice Braga, 40, vive entre São Paulo e Los Angeles há mais de uma década. Por aqui, a sobrinha da atriz Sônia Braga marcou a história do cinema como Angélica, em Cidade de Deus (2002). No exterior, estreou em 2006, com 12 Horas Até o Amanhecer, e consolidou a carreira em filmes como Eu Sou a Lenda (2007), Esquadrão Suicida (2021) e Hypnotic (2023).
— O Kikito de Cristal é um prêmio para personalidades do universo audiovisual que ampliam as fronteiras. Alice é brasileira, mas no nosso olhar seu trabalho é mundial — afirma o curador Marcos Santuário.
Inspirado na canção de Renato Russo, o filme homônimo Eduardo e Mônica (2022) tem Alice como a protagonista feminina, o que lhe rendeu o Prêmio APCA de Cinema. Mais um para o currículo extenso, que acumula vitórias em festivais como Verona Love Screens Film Festival, Festival do Rio, Miami International Film Festival, Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro, Festival de Cinema de Punta del Este e Cine PE.