
"Publiquei um post, fui fazer a janta e, quando olhei o celular de novo, tinha milhares de novos seguidores, milhares mesmo" conta a escritora e ilustradora gaúcha Isadora Brandelli, de 28 anos.
Isadora não entendeu nada. Mas desconfiou de que alguém famoso teria compartilhado seu trabalho. Bingo. Bruna Marquezine tinha reproduzido, no Instagram, uma publicação do perfil @isadoranaoentendenada.
O episódio se deu no final de 2017. Hoje, Isadora conta com uma base de 232 mil fãs na plataforma – pouco se comparado aos 37 milhões seguidores da celebridade que recomendou seu trabalho. Mas muito para quem, à época, era cozinheira em um restaurante em Porto Alegre e tinha na arte apenas um hobby. Desde 2018, as ilustrações viraram profissão.
Em um Estado conhecido por grandes artistas gráficos – como os celebrados Adão Iturrusgarai, Rafael Grampá e Rafael Albuquerque –, artistas mulheres como Isadora têm encontrado nas redes sociais espaço para desenvolver e divulgar seu trabalho. Donna conversou com Majane Silveira, Ana Paula Zonta e Camila Andrade, ilustradoras que estão em momentos diferentes de suas carreiras mas têm, em comum, a presença digital e uma interação constante com seu público, majoritariamente feminino.
Isso não significa que seus temas se restrinjam a questões de e para mulheres. Mensagens sobre aceitação do corpo e machismo estão presentes, já que muitos trabalhos são autobiográficos, mas as temáticas vão além, como vocês poderão conferir abaixo.
Observadora atenta dos talentos que tem repercutido nas redes e fora delas, a historiadora da arte e produtora cultural Mel Ferrari refuta a expressão “arte feminina”, prefere falar em arte feita por mulheres:
– Há um perigo de estigmatizar a produção delas. Existe arte feita por mulheres, e cada uma tem suas especificidades. Uma mulher pode fazer quadrinhos de super-herói e tudo bem.
Existe arte feita por mulheres, e cada uma tem suas especificidades. Uma mulher pode fazer quadrinhos de super-herói e tudo bem.
MEL FERRARI
Historiadora da arte e produtora cultural
Para Mel, a web facilitou a inserção de mais mulheres nesse universo historicamente dominado por homens. Ela está à frente da pesquisa Mulheres nos Acervos, focada nos espaços de arte do Estado: das cinco coleções já mapeadas, 32% dos autores são mulheres. Sócia da Papelera, feira de artes gráficas que já conquistou seu espaço na Capital, Mel faz questão de buscar mulheres para compor uma lista de expositores equilibrada – em algumas edições, elas foram maioria. E ela as encontra justamente nas redes sociais.
– Algumas postam também o seu cotidiano, assim podemos entender mais da sua poética. E, para elas, as redes sociais dispensam as galerias. Podem divulgar seu trabalho e ter um bom alcance. É só começar – diz Mel.
Em 2006, esse “começar” era diferente. Quando a cartunista Mauren Veras decidiu colocar seu trabalho na rede, ainda não existia Facebook nem Instagram. Blogs e sites como Flickr eram as melhores opções para quem quisesse tirar seu trabalho do papel, literalmente, e jogar na web.
A artista de Viamão encontrou uma rede de outros profissionais que desenham e contatou ilustradores e cartunistas de várias partes do mundo. Mas só anos mais tarde, nas redes sociais, pôde interagir com quem aprecia seu trabalho. Em julho de 2018, despediu-se dos leitores do blog Tiras da Mau e migrou de vez para o Instagram (no @maurenveras), onde tem mais de 12 mil seguidores. Ao acompanhar o trabalho dessa nova geração de ilustradoras nas redes, observa as oportunidades que a web social propicia.
– As gerações mais novas estão sabendo usar a economia colaborativa a seu favor e conseguem renda com financiamento coletivo ou venda direta de suas criações, sem precisar de grandes veículos – destaca Mauren, que já foi colunista de Donna e é autora do livro infantil O Cocô Amigo – Desfralde Lúdico (Much Editora).
Se tem uma coisa que não mudou em relação ao longo da trajetória feminina é a síndrome da impostora. Mauren diz que ainda ouve a voz “daquela impostora que vive dentro da gente”, mas afirma que hoje lida melhor com a autossabotagem.
– Às vezes, a voz diz “pra que postar?” Dou uns petelecos mentais nela e posto. Antes feito do que perfeito.
Começar mostrando os trabalhos para amigos e, aos poucos, publicar nas plataformas sociais é um jeito de driblar a insegurança, ensina Ana Paula Zonta, criadora do perfil @anaiaia, com 6 mil seguidores. Assim que expôs seu trabalho, recebeu retornos positivos e se sentiu mais motivada a continuar criando. Isadora, Majane e Camila concordam que o melhor jeito para começar é tirar da gaveta os desenhos e jogar na rede.
– O mundo precisa da voz feminina – diz Majane.
A seguir, você conhece mais sobre os trabalhos de Isadora, Majane, Ana Paula e Camila.

As mulheres são a grande fonte para as ilustrações de Isadora, 28 anos. Mas veio de um homem a inspiração para dar nome a sua página. Foi no livro Mulheres, de Eduardo Galeano, que a ilustradora e escritora encontrou a frase “Isadora não entende nada”.
Na crônica, o escritor uruguaio se referia à bailarina norte-americana Isadora Duncan. Para Isadora Brandelli, “era o nome perfeito”. Ao longo desses sete anos escrevendo poemas e desenhando, a gaúcha diz que “quanto mais ela entende alguma coisa, menos ela entende”.
Entretanto, seu trabalho mostra que não só ela aprendeu muita coisa como está disposta a passar os aprendizados adiante.
E nos comentários, as fãs agradecem-na por traduzir, na arte, emoções que elas também sentem. Isadora fala sobre amor próprio, relacionamento e outras vivências.
– Aprendi a me aceitar. E não interessa o que os outros vão falar. Às vezes, machuca, mas sei que vai doer mais não ser quem eu sou. A intenção passou a ser também ajudar as pessoas, fazer com que se identifiquem e sintam-se melhor. Por isso também escrevo – conta.
Isadora recomenda: @chanademoura

Majane Silveira, 39 anos, optou pelas tirinhas como forma de se expressar. Começou sua trajetória como ilustradora no mercado editorial, mas sentia falta de um trabalho mais “pulsante”.
No final de 2017, criou o @umaspotocas no Instagram, inicialmente publicando cards com personagens como Adolfo e seu currículo invejável – “proativo, sagaz e mora perto do metrô” – e Joice, que “caprichou no look e foi comprar pão”.
Aos poucos, os quadros ganharam sequência em um mesmo post e, em meados de 2018, a artista chegou na configuração com a qual trabalha hoje – um único quadrado dividido em duas ou quatro cenas, formato pensado para o Instagram.
O perfil tem mais de 12 mil fãs, que, volta e meia, são convocados pela artista para conversar e criar inspiração para novas tiras. Suas ideias vêm, principalmente, de cenas cotidianas que, às vezes, tornam-se pano de fundo para críticas sociais. Ela conta que, aos poucos, foi sentindo-se segura para expressar o seu tipo de humor, diferente do “humor bagaceiro” ao qual foi exposta por muito tempo:
– Numa sociedade machista, nossas emoções são, muitas vezes, desqualificadas. Expressar o que sentimos e o que pensamos pode ser um desafio.
Majane recomenda: @tietbo

Versátil, a ilustradora e quadrinista Camila Andrade, conhecida na rede como Camila Raposa, encontra inspiração na moda japonesa e nos animes. Em meio a desenhos coloridos e vibrantes, cavou um espacinho para a escuridão e criou a personagem Delphina dos Mortos, uma garota que vê fantasmas no sul do Rio Grande do Sul. A região não foi escolhida por acaso, Camila é de Bagé (olha o traço autobiográfico aí). Cresceu ouvindo lendas gaúchas, como a da Maria Degolada, que teria sido morta brutalmente pelo namorado e virado santa para alguns e assombração para outros. Ao revisitar esses causos, chamou sua atenção o fato de as histórias de fantasmas terminarem sempre com mulheres mortas:
– Os grandes diretores e quadrinistas do terror são caras, mas a mulherada está procurando se representar no terror e no suspense.
Camila, 31 anos, tem se sentido mais acolhida com as investidas no terror, mas já recebeu críticas. Algumas mães reclamaram do conteúdo por causa das crianças que chegam ao seu perfil depois de frequentarem suas oficinas – por dois anos, a artista manteve um atelier no Complexo de Ideias, em Porto Alegre. A resposta às queixas saiu como um desabafo:
– Professores de desenhos e quadrinistas homens que também dão aula para crianças postam artes de terror e ninguém fala nada. Por que os caras podem e as “minas” não? A gente pode, sim, desenhar suspense, romance, terror, comédia…
Camila recomenda: @jakieatelier

A principal fonte de renda da ilustradora e designer Ana Paula Zonta, 35 anos, criadora do perfil @anaiaia, ainda é o design. Mas foi no Instagram que a publicitária encontrou liberdade total para criar. E acabou encontrando um estilo próprio, que ela mesma, às vezes, tem dificuldade de reconhecer.
– É engraçado porque as pessoas me falam que veem meus desenhos e conseguem identificar o meu estilo. Para mim, foi uma coisa natural – diz.
Ana mescla figuras humanas a animais e elementos da natureza em artes que começaram monocromáticas e ganharam mais cores com o passar do tempo. Gosta de desenhar retratos e personagens do cinema e literatura. Algumas de suas criações são acompanhadas por mensagens encorajadoras, especialmente para mulheres.
Produtos como pins, ecobags e adesivos podem ser comprados em sua loja online, para onde são direcionados os clientes que a contatam pelo Instagram. Mas as feiras presenciais ainda são o principal canal para vender suas artes, conta Ana. Os eventos são uma oportunidade também para conhecer fãs com quem ela interage na rede social.
Com uma dedicação maior às ilustrações no Instagram, a artista acredita que seu trabalho como designer se enriqueceu. Ela atribui à feminilidade presente na delicadeza dos seus traços os convites para trabalhar para marcas cujo público-alvo são mulheres.
Ana Paula recomenda: @nicoleaquarela