Nada 3,8 quilômetros. Pedala outros 180. Corre uma maratona logo depois. Susana Schnarndorf completou 13 provas de Ironman. Em 2005, aos 37 anos e logo após dar à luz pela terceira vez, foi lembrada pelo destino de que não era de ferro.
Os primeiros sintomas que viraram do avesso a vida da gaúcha foram a falta de ar e a dificuldade para engolir. Com diagnósticos equivocados - de síndrome do pânico a tumor no cérebro -, a paralisação muscular evoluía rápido e, em menos de um ano, a pentacampeã brasileira de triatlo passou a precisar de ajuda até para escovar os dentes.
- Meu ironman era colocar o arroz na colher e acertar a oca. Quando eu vi, estava dormindo de fraldas - contou à reportagem durante sua passagem por Porto Alegre para a pré-estreia do documentário que conta sua história, Um Dia para Susana, em cartaz no Espaço Itaú, na Capital.
Na época, Susana morava no Rio de Janeiro, e os três filhos tiveram de ir para a casa do pai, de quem ela havia recém se separado.
- Foi uma decisão difícil, sofri muito. Mas eu não tinha mais condições de cuidar deles. Não tinha condições de cuidar nem de mim - lembra a atleta, que hoje vive em São Paulo.
Depois de três anos sem treinos e uma romaria por mais de 20 médicos, recebeu a sentença: síndrome de Shy-Drager, hoje chamada Atrofia de Múltiplos Sistemas. A doença degenerativa paralisa os músculos gradualmente, limitando mobilidade, e afeta o Sistema Nervoso Autônomo, responsável por controlar pressão arterial, respiração, sistema intestinal e outras funções, explica o neurologista Marcus Vinicius Della Coletta, coordenador do departamento científico de transtornos do movimento da Academia Brasileira de Neurologia.
A média de expectativa de vida dos pacientes com AMS são 10 anos, de acordo com Coletta. Susana chegou a receber um prognóstico de dois, mas já convive com a doença há 14. No próximo dia 12, comemora seu 52º aniversário. A resposta para sua sobrevida com qualidade está no esporte.
Um dos médicos que diagnosticou a AMS em Susana recomendou que ela voltasse a se exercitar. Com a medicação acertada, a pressão estava controlada e ela já havia recuperado um pouco da mobilidade perdida. Cinco anos depois do aparecimento dos sintomas, Susana decidiu voltar a nadar “do jeito que dava”. No clube onde se matriculou, treinava a seleção de natação paraolímpica. Foi aí que sua vida deu outra reviravolta.
- Um dia, o treinador, na época um baiano, olhou pra mim e disse: “minha filha, venha cá, acho que você é ‘bichada’. Tem que nadar com a gente” - conta Susana, imitando sotaque soteropolitano - Eu só pensei: “esse cara tá louco”.
Depois do diagnóstico, Susana não imaginava que voltaria a competir um dia. Mas, em dezembro de 2010, época em que aceitou treinar com os paratletas, já participou de sua primeira competição na nova condição.
- O esporte me devolveu toda a dedicação que dei a ele a vida inteira. Me tirou do fundo do poço. Com a natação, melhorei da depressão, tive mais vontade de fazer as coisas, recuperei minha autoestima.
Medalha de prata
Foi nesse momento que Susana se reaproximou dos filhos, que, segundo ela, “voltaram a ter orgulho da mãe”. Em 2011, foi convocada para os Jogos Parapanamericanos e, no ano seguinte, estava na Paraolimpíada de Londres. Foi campeã mundial na modalidade 100 peito em 2013 e conquistou uma medalha de prata em 2016, nos Jogos do Rio de Janeiro.
O esporte voltava a mover sua vida, com uma importância ainda maior. Sem a natação, a progressão da doença estaria mais acelerada. Parar não é uma opção. A cada amanhecer, ela é lembrada disso. Depois de seis, sete horas de descanso sobre a cama, começar um dia que será de treinos é um processo lento. Para iniciar as atividades às 9h, costuma acordar às 5h30min.
As pessoas têm a crença de que o esporte paraolímpico é para “coitadinhos”. Mas aqui é esporte de alto rendimento. A gente treina muito, tem as mesmas cobranças de um atleta convencional.
SUSANA SCHNARNDORF
Que doença é essa?
A AMS ainda desafia a ciência. Segundo Coletta, não há uma estatística confiável sobre sua incidência no Brasil, mas sabe-se que se trata de uma condição rara que costuma surgir na vida adulta, entre 40 e 50 anos. Não há causas externas conhecidas e mesmo as genéticas são indefinidas, diz o neurologista.
Como em toda doença degenerativa, o quadro de Susana avança. A atleta voltou a nadar profissionalmente na classe S8. A classificação do Comitê Paraolímpico Internacional vai de 1 a 10, quanto menor o número, maior o comprometimento do nadador. Com 50% da capacidade pulmonar hoje, Susana está na S4.
Mas não faltam motivos para celebrar. Enquanto pacientes com até menos tempo de doença necessitam de ajuda para respirar, Susana tem um cotidiano independente, ainda dirige e segue uma rotina intensa de treinos. Claro que a carga é menor do que antes do diagnóstico, mas ela diz que o desgaste é o mesmo, assim como a vontade de competir:
- As pessoas têm a crença de que o esporte paraolímpico é pra “coitadinhos”. Mas aqui é esporte de alto rendimento. A gente treina muito, tem as mesmas cobranças de um atleta convencional - afirma.
Em 2017, Susana voltou a vestir o uniforme do Grêmio Náutico União, clube porto-alegrense onde deu suas primeiras braçadas como atleta profissional. Susana ainda mora em São Paulo, onde treina no Centro de Treinamento Paraolímpico e reapresenta-se na próxima segunda-feira (7) para iniciar mais um ciclo de preparação, agora para Tóquio 2020.
Mas seu maior sonho hoje é mais simples e não deve demorar a se realizar: reunir Kailani, o primogênito, de 22 anos que hoje estuda nos Estados Unidos, Kaipo, 17, e Maila, 14, que moram no Rio de Janeiro, e abraçar os três filhos mais uma vez.