Sabe aquele papo de "novo normal" que (quase!) nos habituamos a ouvir nos últimos meses? Esqueça. Para André Carvalhal, vale muito mais a pena tentarmos nos focar no que dá para fazer agora - inclusive, quando se fala de moda e consumo.
Com um currículo que inclui passagem pelo marketing da grife carioca Farm, como gerente de conteúdo, o consultor e especialista em design para sustentabilidade se dedica a entender os rumos que, com os dois pés bem fincados no chão, a moda pode se enveredar. Foi por isso que o autor dos best-sellers Moda com Propósito: Manifesto pela Grande Virada (2016) e A Moda Imita a Vida: Como Construir uma Marca de Moda (2014) entrou na lista de convidados do Senac Trend Moda & Beleza, que começa nesta segunda-feira (28). Durante uma semana, o Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac promove um ciclo de atividades diárias com especialistas, professores e consultores para debater os caminhos dos setores de moda e beleza.
Além de Carvalhal, que encerra o evento na sexta-feira (2), o Senac Trend trará também nomes como a maquiadora Alee Oliveira, que vai dividir sua participação no maior evento de moda do país, a São Paulo Fashion Week (SPFW), além do head de marketing e estratégica Daniel Keller, que irá falar sobre merchandising e a experiência do cliente.
Para antecipar alguns dos tópicos que você confere na live que encerra a programação, que traz o tema Moda com Propósito, Donna conversou com o consultor de sustentabilidade para falar um pouco sobre o momento da indústria fashion, os aprendizados com o consumo sustentável e mais. Confira os melhores momentos da conversa a seguir:
Muito tem se falado sobre o novo normal. Já que a gente não sabe como será o amanhã - e prever é um tiro no escuro -, como encarar melhor o nem tão novo presente?
Estamos vivendo um momento sem precedentes na nossa história. Mas talvez o que as pessoas não tenham se dado conta é que, diante do que vivemos, o passado perdeu muito sentido e não pode ser usado como referência para as coisas que fazemos, porque estamos em outra realidade. O futuro só pode ser pensado, imaginado ou previsto através de um número tão grande de possibilidades e de cenários que o melhor que temos a fazer é olhar para o presente. Tentar entender o que está acontecendo agora, qual é esse novo mundo que se apresenta e como podemos adaptar as nossas vidas, as nossas marcas, os nossos negócios para essa nova realidade. Às vezes, ficar com a cabeça no futuro, tentando resgatar o que já fomos ou imaginar para onde a gente vai, pode nos desconectar das necessidades de transformação do agora.
Você acredita que essa recessão vai ensinar as pessoas a consumirem melhor - ou que isso é efeito passageiro da crise? O que talvez fique de ensinamento desse período?
Tenho a sensação que, mais do que uma grande transformação, a pandemia vai acelerar grandes processos, individuais e no mercado. Sobre consumo, tenho a sensação de que muitas pessoas podem readequar seus hábitos. Temos visto muitas notícias sobre isso, tanto de quem está transformando seus hábitos quanto de empresas e marcas falando desta questão. Mas tenho a sensação de que quem já estava em um processo mais consciente de transição e de reflexão são as pessoas que vão se transformar mais. Outras pessoas podem ser que transformem outras coisas, ou não tenha nenhum impacto significativo neste sentido na vida.
Consumo consciente é um processo de corresponsabilidade. Não diz respeito somente às empresas ou às marcas, mas também aos consumidores de cobrar, exigir transparência, rever as suas necessidades.
ANDRÉ CARVALHAL
consultor e especialista em design para sustentabilidade
Amazônia, Pantanal, aquecimento global... Você acha que esses assuntos têm feito as pessoas despertarem para a sustentabilidade?
Amazônia, Pantanal, a própria pandemia e as notícias que temos recebido sobre a origem dela, a relação com a interferência no habitat de alguns animais... Talvez não imediatamente, mas tudo isso pode despertar nas pessoas o senso ou a importância da sustentabilidade. De resgatar essa noção de que fazemos parte da natureza, de que dependemos da natureza. Que a nossa interferência gera consequências para nós mesmos. Tudo isso, sim, pode, em algum momento, transformar o consumo - não apenas de moda, mas de alimentos a bens de diversos tipos - e a nossa relação com a sustentabilidade.
E você acha que essas mudanças vêm do consumidor? Estamos cobrando mais, querendo saber de onde vem o que vestimos?
O consumidor tem um papel super importante neste processo. Tenho falado, cada vez mais, que o consumo consciente é um processo de corresponsabilidade. Não diz respeito somente às empresas ou às marcas, mas também aos consumidores de cobrar, exigir transparência, rever as suas necessidades. Existe, sim, nesse movimento do consumo consciente, uma parcela de responsabilidade de mudança que vem por parte das pessoas, mas, sem dúvida, há outra que vem das empresas e das pessoas que estão dentro das empresas e que têm se transformado.
Muito gente reclama dos preços praticados por algumas marcas sustentáveis. Você acha que há caminhos para a moda sustentável se tornar mais acessível?
A questão do custo tem várias outras envolvidas. De alguma forma, estabelecemos no mercado uma média de valores que é irreal, que não é factível para muitas marcas. Acabamos criando uma referência de preço de marcas que produzem em grande escala fora do Brasil, com matérias-primas de qualidade duvidosa, que não remuneram de forma justa seus funcionários. Muitas têm uma cadeia informal de produção. Ou temos marcas de altíssimo luxo, padrão e qualidade. É como se nossa referência de preços fosse oito ou 80. No meio disso, existem diversas outras faixas de preços que são mais honestas, justas, respeitosas, que teriam diversas outras classificações. A moda sustentável vem para desconstruir um pouco isso, trazer custos mais seguros e responsáveis, que minimizam impacto. Isso, obviamente, tem um preço. E, dentro da moda sustentável, temos diversas possibilidades e formas de fazer a moda mais responsável. Desde um reaproveitamento, que pode gerar um custo final mais acessível. Podemos ter coisas mais exclusivas e com mais qualidade, visando uma longevidade maior do produto. Não existe uma única verdade em relação a isso.
Inclusão e diversidade são palavras-chave que viraram slogans para muitas marcas. Como você vê esse momento mais "inclusivo"? De fato, a moda está mais diversa ou são iniciativas pontuais?
Estamos vivendo no mundo muita censura, opressão, invisibilização, exclusão. Na contramão disso, há um movimento de trazer luz, libertar e abraçar pautas que, por muito tempo, foram oprimidas, independentemente de quanto isso representa em termos de população, que, durante muito tempo, foi invisibilizada. Vivemos esse cabo de guerra, um estica e puxa de um lado para o outro. Vejo algumas marcas se envolvendo com essas pautas. Existem muitos discursos importantes e urgentes, e cada marca, naturalmente, vai estar mais aberta e conseguir sustentar e colocar na prática a inclusão, a diversidade, de forma mais profunda e verdadeira. O que fazer e quem apoiar têm a ver com a individualidade de cada marca.
Moda também é acesso - aqui, falo de pessoas gordas e pessoas com deficiência (PCDs), que têm demandas específicas. Por que você acha que o mercado ainda não consegue ver o valor, inclusive econômico, de atender adequadamente a esses públicos?
Existe essa questão que você traz de quase não ver um valor econômico, mas também há, por outro lado, uma questão de se viabilizar economicamente numa lógica de pré-produção, produção e disponibilização de peças, que vêm desde o prêt-à-porter, onde entendemos que precisamos atender o que é dito como a média. Em termos de tamanho, nem ir para os tão grandes e nem para os tão pequenos. Pensar em peças que possam vestir a maior variedade possível de corpos, independentemente de suas funcionalidades ou “desfuncionalidades”. É uma combinação dessas duas coisas que começaram a ser vistas como um valor econômico, com potencial econômico. À medida que foram nascendo marcas nichadas, como plus size, ou minicoleções, as colaborações, esse começa a ser visto como um público consumidor. A partir daí, começamos a ver a transformação no mercado.
Muito tem se discutido sobre como será o consumo nos tempos pós-pandemia. No seu Instagram, você já falou, especificamente, sobre o varejo, em como a ideia de experiência deve ser a tônica da vez.
Existem muitas variáveis para prever: como serão os desfiles, as campanhas, as lojas daqui para frente. Passamos agora por esse período de transição. Durante um período, achamos que o online seria a única opção. Hoje já vemos um momento de reabertura, e recebemos notícias de que o online volta a diminuir um pouco as vendas. Neste momento, estamos impedidos de fazer as lojas funcionarem como eram antes, como locais de experiência, de ponto de encontro. É uma transformação que estamos vendo agora. A longo prazo, não temos muito como prever.
No seu perfil, você comentou também sobre como está tudo muito igual na moda. Você estava se referindo a roupas, mas acrescento que estamos parecendo iguais até nas feições, na aparência. Estamos menos criativos? O quanto essa pasteurização é reflexo da internet?
Essa pasteurização é um reflexo, talvez, da velocidade e da agilidade que a gente acha que precisa ter nos novos tempos. Absorvemos uma noção de que fatores de sucesso e crescimento estão relacionados à quantidade, a número, à crescimento exponencial. Nossa relação com o tempo a partir do surgimento dos aplicativos, das redes sociais… Tudo isso muda, de alguma forma, nossa relação com o tempo, e isso muda também a forma como a gente faz e pensa as coisas, que também se transforma. Um dos sintomas disso é a superficialidade que estamos percebendo.