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Dizer que Cidade de Deus (2002) é um dos filmes mais importantes do cinema nacional nada mais é que o óbvio. A produção, que foi dirigida por Fernando Meirelles e teve codireção de Kátia Lund, recebeu quatro indicações ao Oscar e, até hoje, figura nas listas de melhores longas-metragens de todos os tempos. Do mundo. É uma obra-prima indiscutível. Sendo assim, é preciso ter coragem para mexer no legado desta entidade audiovisual.
Coragem, porém, é o que não falta para o diretor baiano Aly Muritiba, responsável por filmes como Deserto Particular (2021), escolhido para representar o Brasil no Oscar 2022, e por comandar a série revolucionária para os padrões brasileiros Cangaço Novo (2023), do Prime Video. Ao ser convidado para capitanear o projeto, que é da O2 Filmes — produtora de Meirelles —, não demorou para aceitar. Sabendo da responsabilidade de lidar com um projeto tão importante, escolheu, para dar sequência à história, ir por um caminho diferente: o seu próprio.
— Decidi que iria respeitar o espírito do filme, mas sem fazer reverência a ele. O filme tem uma importância basilar para o cinema brasileiro e a coisa mais importante que ele fez foi se imbuir de um espírito muito revolucionário. Não poderia, então, copiar o que o filme fez, porque não estaria sendo revolucionário, não estaria apresentando nada de novo. Nem tentei chegar perto do filme — explica Muritiba, em entrevista a Zero Hora.
Mesmo que seu storytelling seja distinto daquele proposto no longa, assumindo uma linguagem bem de série, com bons cliffhangers entre episódios, a temática segue a mesma: a disputa de poder, o tráfico de drogas, a corrupção e os sonhos de quem se vê no meio de tudo isso. Há, também, uma estreante neste universo: a milícia, que começa a dar suas caras. Tudo bem amarrado entre novos e antigos personagens.
O primeiro episódio de Cidade de Deus: A Luta Não Para estreia no Max neste domingo (25) — os demais serão lançados a cada domingo, até 29 de setembro. Serão seis capítulos na primeira temporada.
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A volta
Na história, que avança 20 e poucos anos em relação à trama do filme, Buscapé — ou melhor, Wilson (Alexandre Rodrigues) — está em 2004 e trabalha como fotojornalista de um importante jornal carioca. O personagem construiu sua carreira retratando o cotidiano na favela, a violência e o sangue derramado pelas ruas da Cidade de Deus, bairro do Rio de Janeiro. O seu ponto de vista é o fio condutor para que as antigas e novas histórias do local sejam contadas.
Alexandre comemora esta oportunidade de poder viver novamente o personagem, agora mais maduro — e não teme que outro projeto manche o legado do filme que o consagrou:
— Cidade de Deus vai continuar sendo Cidade de Deus. Não tem como mudar. É uma obra de arte. Mas eu acho que tem muita água para passar por baixo dessa ponte. No Cidade de Deus, inclusive, ficaram faltando alguns pontos, pessoalmente dizendo, de história. Não deu para contar tudo no filme. E continuamos, agora sob direção do Aly Muritiba. Não tinha como eu não fazer, por mais que tenha tido um certo medo, um medo reverencial, por tocar nesta obra.
O protagonista não retorna sozinho. Entre os diversos rostos conhecidos, ainda estão Roberta Rodrigues, que interpreta novamente Berenice; Edson Oliveira, revivendo Barbantinho; e Thiago Martins, que volta como Bradock — umas das crianças responsáveis por matar Zé Pequeno no final do filme. Entre as caras novas, está Andréia Horta, que interpreta Jerusa, advogada que quer levar o namorado, Bradock, ao poder da Cidade de Deus, desbancando Curió, vivido por Marcos Palmeira.
— O medo que eu tinha era de a gente não conseguir fazer a ligação do filme à série, mas isso caiu por terra no momento em que a gente começou a filmar. Entendemos que existia toda uma essência do filme, mas que a gente estava em outro momento. Ao mesmo tempo, tínhamos um outro olhar, mais profundo, mais dentro da comunidade, entrando no interior destes personagens, os que têm família, como é a rotina, como é que eles lidam com essa situação que está acontecendo — reflete Roberta.
Dentro desta trama, o jornalismo terá destaque, sendo uma importante ferramenta para dar, na série, o contexto sociopolítico do bairro, da cidade, do país e do mundo por parte da produção. Desta forma, Buscapé, mesmo sendo um grande repórter fotográfico, passa a questionar se é possível mudar a sua realidade com a sua ferramenta de trabalho.
— Aos poucos, o Buscapé vai compreendendo que a sua câmera é a sua arma. O personagem, que nunca teve coragem de dar um tiro, e que continua sem coragem para isso, vai começar a transformar as coisas atirando com a câmera. Tem essa metáfora muito grande. Quando a gente fala que vai fazer uma tomada (trecho de filme), até hoje chama em inglês de shot, de tiro — comenta Muritiba.
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A discussão segue
Com a popularidade de Cidade de Deus, no começo dos anos 2000, logo começou a se ventilar que, na verdade, o longa-metragem teve dois diretores. Além de Meirelles, Kátia Lund também teria comandado o filme. Uma disputa judicial chegou a ser aberta pela cineasta, pedindo os devidos créditos, uma vez que ela foi nomeada apenas como codiretora.
O tempo passou e se convencionou que os nomes de ambos seriam responsáveis pelo crédito da direção da produção — em sites como IMDb e AdoroCinema, ambos estão lado a lado. Entretanto, na abertura da série, aparece a seguinte mensagem: "Inspirada no filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles". Sem Kátia Lund.
— Eu ouvi dizer que ela foi uma diretora extremamente ativa e criativa. E o filme é dela e dele. Dele e dela. E as pessoas esquecem muitas vezes de falar da Kátia Lund, o que é um grande desserviço para o cinema nacional. No fim das contas, é uma mulher, dirigindo um filme incrível no começo dos anos 2000. As pessoas falam hoje da mulher no cinema, mas a mulher no cinema está faz tempo — salienta Muritiba.
Alexandre explica como funcionou a dinâmica no set do filme entre os dois cineastas:
— O Fernando dirigia as cenas e ela dirigia os atores. Então, acabava que ela ficava muito mais próxima de nós do que o próprio Fernando, que estava ali dirigindo as cenas como um todo.
Para Roberta, a participação de Kátia no filme de 2002 foi de extrema importância, visto que ela e Meirelles se encaixaram perfeitamente na construção da obra:
— É por isso que o filme é um grande sucesso. Ela é uma mulher incrível, uma mulher que eu admiro muito. Mas existe um lugar em que a gente nem sabe mexer, que é esse de como funciona créditos e não créditos. Só que a gente sempre vai dar o crédito para ela e para o Fernando.
Muritiba, por sinal, apontou que Kátia não participou da série porque estava em outro trabalho, ao contrário de Meirelles, que é um dos sócios da O2 Filmes, que produz a série:
— O Fernando, como era o "dono da boca" antes, participou mais de perto, lendo o roteiro, trocando ideias comigo, mas de maneira muito respeitosa, deixando muito claro desde o começo: "Olha só, a boca agora é tua, cuida dela".