Uma ferida que segue aberta. A tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, completa uma década em 27 de janeiro, próxima sexta-feira. Mesmo depois de 10 anos, as famílias das 242 vítimas fatais ainda aguardam a conclusão de uma parte de seu sofrimento — o júri, que condenou os quatro réus à prisão, no final de 2021, foi anulado, por questões técnicas. E os acusados, hoje, estão soltos.
Todo este tempo, porém, foi de luta por parte dos pais, que não desistiram de buscar uma resposta — para que, inclusive, fique de lição e que um episódio como este jamais se repita. Para marcar esta década de perseverança, o repórter da TV Globo Marcelo Canellas conduz e dirige a série documental Boate Kiss - A Tragédia de Santa Maria, que estreia os seus cinco episódios nesta quinta-feira (26), no Globoplay.
Em capítulos de aproximadamente 55 minutos, a produção refaz a sucessão de acontecimentos que levaram à morte dos jovens, e, principalmente, mostra as reviravoltas de um processo judicial cujo desfecho permanece imprevisível. O final da produção, que seria o julgamento, teve que ser alterado devido à anulação que ocorreu meses depois. Canellas, então, busca reviver a jornada destas famílias.
— É um grande retrato desta trajetória de 10 anos de um grupo de pais e mães que, movidos pelo amor pelos filhos, nunca desistem. Você pode imaginar o cansaço quando, depois de uma década, eles receberam a notícia do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul de que o julgamento não valeu e que tudo vai começar da estaca zero. Mas, mesmo com esta exaustão, não há sinal de que eles vão parar — destaca o jornalista, que nasceu em Passo Fundo e, ainda bebê de colo, mudou-se com a família para Santa Maria.
Santa-mariense
Logo no começo do documentário, Canellas se coloca como parte da história — inclusive, visitando o campus da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde estudou e, antes de partir para o Jornalismo, chegou a ser aluno de Agronomia, um dos cursos que organizou a festa da Kiss, naquele janeiro de 2013. Assim, o jornalista cria o elo entre o espectador e a narrativa que está contando, de maneira delicada e próxima das famílias.
— Este formato foi decidido entre nós, a partir da minha ligação com Santa Maria. Tenho uma ligação profunda com a cidade, não só porque cresci, estudei e me formei jornalista lá. Estes laços se mantêm até hoje. Já rodei pelos quatro cantos do mundo e posso dizer que o lugar onde tenho aquela sensação de pertencimento é em Santa Maria. Não havia outra maneira de me colocar em um documentário sobre a tragédia em que não tivesse profundamente ligado, porque, de 35 anos de carreira, não tem nenhum trabalho que tenha mais a ver comigo do que essa tragédia — explica o repórter.
Canellas, que em um primeiro momento declinou de embarcar no caso, em 2013, em poucos dias mudou de ideia, por conta deste profundo sentimento que sente pela cidade e pelos seus habitantes. Assim, nos últimos 10 anos, foi responsável por diversas matérias especiais para o Fantástico sobre a tragédia e, inclusive, conta que foi uma das primeiras pessoas a propor o memorial para as vítimas onde, hoje, ainda existe o prédio da Boate Kiss.
— Então, a gente decidiu que a minha postura ia ser um pouco mais autoral, exatamente porque não há como me desvincular desta história. E achamos que, do ponto de vista narrativo, não se podia esconder o meu envolvimento com a história. Por exemplo, fui colega de ensino fundamental e amigo de infância de um dos réus, que é um dos donos da boate, o Mauro Hoffmann. São muitos os cruzamentos. Conhecia, também, várias famílias que perderam seus filhos e, ao longo dos anos, aprofundei um laço de amizade com muitos deles — explica.
Memória
GZH teve acesso antecipado aos dois primeiros episódios de Boate Kiss - A Tragédia de Santa Maria e, logo no começo da série, imagens do dia do incêndio são mostradas, dando a dimensão do caos que se instaurou naquela madrugada de domingo, na Rua dos Andradas, no centro da cidade. Parte deste material apresentado é inédito, bem como entrevistas e imagens de dentro do estabelecimento antes da tragédia.
Ao todo, foi um ano e meio de trabalho para a criação do documentário. Antes disso, porém, a TV OVO — coletivo audiovisual de Santa Maria, nascido como projeto de transformação social e especializado em resgatar a memória da cidade — já contava com uma importante quantidade de material acumulado. Partiu da própria TV OVO a iniciativa de propor a produção para Canellas, que levou o projeto para o Globoplay e, assim, o sinal verde foi dado, em uma parceria entre o streaming e o coletivo.
É justamente a memória que o documentário quer manter viva. Sob o ponto de vista dos familiares e dos sobreviventes, Canellas ainda aborda que, ao longo dos anos, a cidade onde ocorreu a tragédia passou por uma mudança de humor, o que ele adjetiva como "chocante". Quando ocorreu o incêndio, ele relembra que houve um abraço unânime às famílias.
— Mas, com o passar do tempo, houve um movimento que é uma coisa muito brasileira: você acreditar que, para superar, é preciso esquecer. Este movimento vai crescendo na medida em que o lugar do outro foi ficando cada vez mais distante e difuso na linha do tempo. Então, você já não reconhece mais o lugar do outro e começa a se incomodar com o sofrimento alheio. Esse foi um processo que aconteceu em parte da cidade, e o documentário é uma força contrária a essa ideia de esquecimento e fala que Santa Maria precisa assumir essa cicatriz — enfatiza o jornalista.
Tal movimento, para Canellas, também contamina as estruturas do Estado e isto justifica que, após uma década, o aparelho judiciário ainda não tenha conseguido dar uma resposta para as 242 famílias que sofrem diariamente:
— Uma coisa absolutamente inadmissível. Não é possível se falar em justiça quando se espera 10 anos para dar uma satisfação a um pai e uma mãe que perderam o filho. Mas, ao final, esta é uma grande história de amor, que supera o trauma da tragédia: é a história do amor de 242 pais e mães por 242 filhos que morreram. E a gente, como pai e como filho, acaba sendo representado pelo amor gigante destas pessoas.