Todo Carnaval é assim: antes da festa, vêm as polêmicas. Desde o dia 8, cerca de 50 dias antes da folia, surgiu a primeira delas. A Globeleza, musa do carnaval da TV Globo, emissora detentora dos direitos de exibição dos desfiles das escolas de samba do Rio, o principal do país, passou a sambar vestida, e não mais com o corpo nu, pintado com purpurina. Erika Moura, a atual Globeleza, usa roupas que remetem a manifestações culturais Brasil afora, e tem performance menos sensual do que as de outros anos.
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Houve comemoração por parte de mulheres que se sentiam aviltadas com o que consideravam "objetificação do corpo feminino". Houve quem considerasse a decisão da Globo um reflexo de uma onda conservadora no país. Ela estaria presente na eleição de políticos ligados a religiões – no Rio, o novo prefeito é Marcelo Crivella (PRB), é bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus – e na reverberação de pautas como a do Estatuto da Família.
Além de estar fantasiada, este ano Erika economiza no rebolado, e aparece cercada por outros dançarinos, também caracterizados com roupas alusivas à folia de outros Estados – até então, a Globeleza sambava sozinha. A Globo, porém, desconversa sobre as mudanças.
"O Carnaval é uma festa popular, vanguardista, inclusiva, contestadora, múltipla. Já há algum tempo, estudamos uma maneira de enriquecer a vinheta com outros ritmos do carnaval brasileiro, representando a riqueza da diversidade dessa festa popular", diz nota oficial da emissora. "Assim, chegamos a esse formato, que une o já tradicional carnaval de avenida, com símbolos e elementos do frevo, do axé, do maracatu e do bumba meu boi. A boa acolhida do público mostra que fomos no caminho certo. Ampliamos o significado do carnaval Globeleza, uma marca importante da Globo, e o público entrou nesta festa conosco."
No papel desde 2015, a dançarina paulistana Erika Moura, 24 anos, responde na mesma linha:
– Sou adepta de mudanças. Independentemente de estar com o corpo pintado ou coberto, está valendo, estou fazendo a minha arte. Meu corpo é meu veículo de trabalho. Não me sinto gostosa, me sinto bonita – contou Erika, que acredita que a vinheta agora tem caráter mais nacional: Muitas pessoas estão se vendo ali.
Embalada por um samba de Jorge Aragão e Franco Lattari, hoje na voz do cantor Neguinho da Beija-Flor, a Globeleza foi criada pelo designer Hans Donner.
A primeira foi Valéria Valenssa, que ficou no posto de 1993 a 2005, com variações nas pinturas: ora seus seios ficavam totalmente à mostra; ora a cobertura era mais extensa. Invariavelmente, dava entrevistas contando como era ficar 12 horas imóvel para a aplicação da purpurina. Ao jornal carioca Extra, Valéria, hoje com 45 anos e mãe de dois meninos, disse que a mudança seria impensável no passado.
– Os tempos são outros – afirmou a ex-Globeleza.
Em texto viralizado no Facebook no pré-Carnaval de 2016, as feministas negras Stephanie Ribeiro e Djamila Ribeiro criticaram a hipersexualização da mulher negra representada pela Globeleza e pediam o fim da personagem. Este ano, aprovaram a troca:
"A verdade nua e crua é que a Globeleza, atualmente, só reforça um lugar fatalista, engessado, preestabelecido para a mulher negra numa sociedade brasileira racista e machista e esse lugar fixo precisa ser rompido, começando com o fim desse símbolo/personagem. Não aceitamos ter nossa identidade e humanidade negadas por quem ainda acredita que nosso único lugar é aquele ligado ao entretenimento via exploração do nosso corpo. (...) Não queremos protagonizar o imaginário do gringo que vem em busca de turismo sexual. Basta!"
A pesquisadora de Carnaval Rachel Valença, que acompanha os desfiles desde 1960, credita a mudança na imagem da Globeleza a um aceno ao conservadorismo:
– Ela representava a passista de escola de samba e nunca foi vulgar. Na dança, a nudez não é sensualizada nem imoral, é uma forma de expressão corporal. Cobrirem esse corpo é um retrocesso, é moralismo e corresponde a uma fase de conservadorismo da nossa sociedade.
* Por Roberta Pennafort