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Milton Cunha é a cara do Carnaval. Conhecido do grande público pelos mais de 10 anos como comentarista nas transmissões da TV Globo, o comunicador tornou-se uma figura canônica da folia.
Cunha compartilha com os lares brasileiros sua paixão pela festa máxima da cultura popular do país, sempre munido de bom humor, glamour e jargões inconfundíveis — como "faraônico", "babilônico" e "opulente".
Mas além de apaixonado, Milton Cunha também é especialista em Carnaval, tendo concluído pesquisas de mestrado, doutorado e três pós-doutorados ligadas ao tema. Somada a isso, há a experiência empírica de quem já fez muitos desfiles nascerem do zero, enquanto carnavalesco de escolas de samba cariocas como Beija-Flor, Viradouro e Unidos da Tijuca.
Milton Cunha é alguém que tem propriedade para falar de Carnaval e não admite inverdades a respeito da folia. O comunicador defende com unhas e dentes a soberania das escolas de samba, cobra investimentos públicos e rechaça qualquer tentativa de censurar o Carnaval, reafirmando que a festa tem origem negra e periférica.
Em meio aos preparativos para mais uma maratona de transmissão dos desfiles (veja informações ao final da entrevista) de São Paulo, nesta sexta (28) e sábado (1º), e do Rio de Janeiro, domingo (2), segunda (3) e terça (4), Milton Cunha falou com Zero Hora sobre a resistência do Carnaval nos diferentes cantos do país, analisou as potencialidades e dificuldades da folia gaúcha e comentou a polêmica envolvendo os desfiles de Canoas.
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Leia a entrevista
Recentemente, você foi coroado Embaixador Globeleza, uma espécie de "padrinho" das transmissões do Carnaval. O que isso representa?
É uma honra enorme, porque o Carnaval Globeleza é a documentação da memória. A partir da transmissão, a gente consegue eternizar algo que é efêmero, sabe? Quem assiste lá, ao vivo, vê e sente tudo, mas o que fica para sempre é o vídeo, a foto, a narração.
Ser embaixador desse conjunto de transmissões é maravilhoso por isso. E se você pensar, eu sou um menino pobre da floresta que chegou ao Rio de Janeiro acreditando que ser carioca é um estado de espírito, que não é simplesmente nascer no Rio de Janeiro.
Em qualquer lugar, a matriz da escola de samba é africana e negra
Construí a minha identidade e a minha carreira sobre os pilares da escola de samba e do Carnaval, seja como acadêmico, artista, carnavalesco ou folião. Então, estar na transmissão dos desfiles, podendo encher a bola das comunidades e do povo do samba, é a glória para mim.
Esse título de embaixador vem para coroar o meu esforço pela valorização da cultura popular brasileira. Eu sou uma voz a serviço das comunidades e do talento popular.
Como você comentou, não é alguém que nasceu em berço de samba, tampouco no Rio de Janeiro. De onde vem o seu encantamento pelo Carnaval?
Vem, sobretudo, do reconhecimento de que a escola de samba é fruto de um milagre. Porque é um milagre colocar uma escola de samba na avenida. Tudo é tão caótico que você não entende como a coisa vai se organizar. Se você vai na concentração, acha que nada daquilo vai dar certo. O povo fica disperso, uns sentados, outros subidos em escada, uma gritaria, foguete explodindo, sirene tocando, enfim, o caos. Até que, em cinco minutos, a mágica acontece e a escola está na avenida. Isso é muito misterioso, muito sedutor.
E depois de tanto tempo vendo isso acontecer, ainda dá para se emocionar?
Nossa, se dá. Eu sou movido pelo arrepio. Você acha que eu consigo ficar seis noites sem dormir como? (risos) Eu não preciso nem de energético, sou movido somente pelo amor que sinto pelo Carnaval.
Tentar colocar a África e a africanidade como itens de um mesmo balaio é uma burrice, uma ignorância
Neste ano, você estará à frente dos desfiles de São Paulo e do Rio de Janeiro. O que há em comum entre essas festas?
A primeira coisa a se ter em mente é que, em qualquer lugar, a matriz da escola de samba é africana e negra. O Carnaval paulista é incentivado pelo Carnaval carioca. Esse movimento começa no Rio de Janeiro, e os cariocas estimulam os paulistas a também fundarem os seus grêmios recreativos e as suas escolas de samba.
A grande semelhança está na força dessas comunidades, que funcionam como quilombos modernos, porque é ali que a negritude se casa, fofoca, briga, ama e exibe a sua arte. A vontade do povo de colocar a escola de samba na avenida é o que faz esses Carnavais acontecerem. Eu adoro os dois e acho que eles são muito representativos da grandeza do nosso povo.
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Você acompanha também as folias fora do eixo do Sudeste? O Carnaval de Porto Alegre, por exemplo.
Sim, porque eu sou um apaixonado pelo tambor. Eu acho que o tambor é a gênese povo do brasileiro, e é impressionante como ele migrou e foi relido pelas diferentes culturas.
Aí entram os tambores do quilombo Porto Alegre, os tambores fronteiriços de Uruguaiana, os tambores açorianos de Santa Catarina, os tambores nordestinos do Catimbó, os tambores amapenses do Marabaixo, o Tambor de Mina no Maranhão. O tambor foi incorporado de diferentes formas nessas sociedades.
Em Porto Alegre, a negritude toma o tambor como uma forma de se colocar e demarcar a sua existência no território. Isso me faz pensar que estamos vivendo tempos muito esquisitos, com toda essa questão de não querer que as escolas de samba tenham enredos africanos, não querer que exaltem valores culturais da negritude.
É uma loucura isso, porque o tambor e o Carnaval sempre foram a resistência dos negros. Resistência é a palavra-chave desse povo que não quer fazer mal a ninguém, só quer ser feliz.
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Nesta semana mesmo, repercutiu uma fala do carnavalesco da Vila Isabel, Paulo Barros, afirmando que "desfiles com temática africana são todos iguais e ninguém entende nada". Você concorda?
Eu discordo em gênero, número e grau. Tentar colocar a África e a africanidade como itens de um mesmo balaio é uma burrice, uma ignorância. A África tem 54 países, cada um deles com ética, estética, arte, cultura, gastronomia, engenharia, arquitetura, fé, religiosidade, matemática e ciência próprias. Então, a África é um manancial de enredos. Reduzir todo esse universo a "enredos africanos", ou chamar tudo isso de uma "macumba", é uma tentativa de menosprezar e apagar essa riqueza cultural.
O Carnaval é uma procissão negra, ele vai sempre se voltar para a sua história e os seus personagens. Querem que as escolas de samba falem de quê? Dos deuses da Escandinávia? Não vão, porque isso não vai tocar o coração das comunidades. O samba é reafirmação da identidade da negritude, é a sabedoria, a inteligência e o talento do negro. Quem sabe tocar? Quem sabe dançar? Quem sabe compor? É a negritude. Portanto, as escolas de samba devem contar histórias que falem ao seu coração.
Aqui no RS, entidades carnavalescas da cidade de Canoas denunciaram que a prefeitura teria proibido enredos relacionados às religiões de matriz africana, aos negros e à comunidade LGBT+, sob pena de não apoiar os desfiles (a prefeitura nega, e o Ministério Público Federal está apurando se houve preconceito). O que você pensa sobre isso?
Essas são tentativas de pasteurizar os desfiles e tirar deles a força da crítica social, porque o Carnaval sempre foi a voz das comunidades para pedir respeito e atenção ao poder público. Quando um gestor diz que só vai apoiar se o desfile for assim ou assado, isso é uma tentativa de controle. E é a cara do Estado fazer isso.
O Estado quer controlar o Carnaval para que ele perca força enquanto discurso, mas esquece que o samba já nasceu apanhando da polícia. Essa manifestação, que hoje é a vitrine da cultura brasileira para o mundo, sempre apanhou e sempre foi perseguida. Há cem anos o samba negocia com a oficialidade, resiste e se esgueira. Ele vai continuar resistindo.
Porém, é incrível pensar que existem gestores públicos que, em vez de gerirem para todos, fazem uma gestão seletiva, voltada só para aquilo que eles gostam. Isso é censura, é uma forma de calar a voz das pessoas. Uma democracia não pode ser assim.
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Em algumas cidades, isso se expressa, inclusive, pelo afastamento geográfico do Carnaval.
Como em Porto Alegre, né? Os tambores da negritude ocupavam o centro e foram empurrados para longe (com a construção do Complexo Cultural do Porto Seco). Aliás, sempre que pode, o poder oficial, que é representado pela branquitude, empurra o tambor para a periferia. Com essa desculpa de construir novos sambódromos, o Estado vai empurrando aquelas manifestações que não interessam, que são as manifestações do povo.
Eu não tenho nada contra a orquestra sinfônica, nada contra o balé clássico, nada contra as artes europeias ditas clássicas, mas tenho tudo a favor do povo.
O Carnaval sempre foi a voz das comunidades para pedir respeito e atenção ao poder público
E imagine que agora ainda há um levante da voz neopentecostal, claramente abrindo guerra contra as escolas de samba. Nesta semana, Joana Prado, ex-Feiticeira, e o marido Vitor Belfort fizeram um vídeo afirmando que o Carnaval é uma "invocação ao demônio".
Quer dizer, como se não bastasse a perseguição oficial do Estado, temos que lidar também com a perseguição neopentecostal. São pessoas que se arvoram em uma santidade para demonizar as outras, quando, na verdade, basta ser humano para não ser santo.
Além de ser essa figura canônica do nosso Carnaval, você há muito tempo é um acadêmico, com doutorado e pós-doutorado. Quando ingressou no ambiente acadêmico, querendo pesquisar o Carnaval e a cultura popular, foi bem recebido?
Olha, a intelectualidade é encastelada, ela quer ficar lá no escritório refrigerado dela e não quer se debruçar sobre os valores, as estruturas narrativas e as manifestações culturais do povo.
Quando eu cheguei, todo mundo só queria estudar "o cânone". E o que é o cânone? É aquilo que está distante das pessoas, que está inacessível. Os grandes mestres me diziam: "Não perca seu tempo. Não dá para estudar escola de samba, não tem nem bibliografia sobre isso". E eu dizia: "Quem vai inaugurar a bibliografia sou eu". E eu inaugurei.
Sempre que pode, o poder oficial, que é representado pela branquitude, empurra o tambor para a periferia
Hoje, essa intelectualidade distante e encastelada, que olha para a cultura popular como um objeto menor, está ruindo. Temos pesquisadores de todo o país interessados em sistematizar conhecimentos sobre a cultura popular, e isso está só começando.
O intelecto branco precisa aceitar que o mundo está mudando. O povo está entrando nas universidades e está levando as suas questões para o ambiente acadêmico, por isso temos visto cada vez mais pesquisas sobre questões da negritude, questões indígenas e questões LGBT+.
A minha resposta para esse velho intelecto branco permanece sendo: "Amor, aceita que dói menos. A gente tá detonando".
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Como será a transmissão dos desfiles
São Paulo
- A TV Globo exibirá os desfiles de São Paulo para todo o Brasil nesta sexta (28) e no sábado (1º), logo após o BBB 25
Rio de Janeiro
- No domingo (2), os desfiles do Rio serão transmitidos somente para os cariocas. O restante do país vai conferir a cerimônia do Oscar, a partir das 21h55min. Os desfiles do Carnaval carioca voltam a ser exibidos em rede nacional após o Oscar, com reapresentação das primeiras escolas ao final das apresentações na Sapucaí
- Já na segunda (3) e na terça-feira (4), os desfiles do Rio serão exibidos ao vivo para todo o Brasil, logo após o BBB 25