Parte importante da história do Rio Grande do Sul está guardada em Taquara, no Vale do Paranhana. Aliás, são mais de 1 milhão de partes, entre fragmentos de lanças, artefatos de cerâmica, vestígios ósseos e outros itens que remontam aos primeiros habitantes do Estado. Tesouros da arqueologia gaúcha, as peças integram o acervo do Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul, o Marsul, que reabriu ao público em dezembro de 2024, após 16 anos fechado.
O museu parou de receber visitantes em 2008, devido a problemas na estrutura do prédio principal, construído na década de 1970. De lá para cá, a instituição encabeçou tentativas de captação de recursos para a reforma, inclusive junto a pessoas físicas, mas não teve sucesso.
As obras necessárias tiveram início somente em meados de 2022, a partir de investimento de R$ 1,7 milhão. Os recursos são do programa Avançar na Cultura, da Secretaria Estadual da Cultura (Sedac), responsável pela administração do museu.
— Há um grande esforço da nossa gestão para resgatar a dignidade das instituições culturais do Estado. Entre elas está o Marsul, que tem uma importância imensurável, mas vinha enfrentando dificuldades ao longo de muitos anos — comenta o secretário-adjunto da Cultura, Benhur Bortolotto.
Conforme o gestor, além dos problemas na estrutura, havia "carência de pessoas qualificadas para trabalhar na instituição", com a estabilidade de concurso público.
— Isso é fundamental para garantir uma continuidade ao trabalho que está sendo desenvolvido, e felizmente conseguimos viabilizar — completa.
Para possibilitar a reabertura, a estrutura do Marsul passou por reparos diversos, sendo a troca do piso e do telhado do prédio os mais significativos. O valor ainda incluiu a compra de mobiliário expositivo e para os laboratórios da instituição, que é referência para a arqueologia do Rio Grande do Sul e recebe pesquisadores de diferentes regiões do país.
Resgate da raiz indígena
O investimento também deu conta do desenvolvimento da exposição que agora ocupa a galeria do museu. Entre fragmentos e peças inteiras, é possível desvendar rituais, simbologias, tradições e o modo de vida dos antepassados do Estado. Os grupos étnicos Guarani, Jê e Kaingang têm suas culturas detalhadas na mostra.
— Cada parte da exposição fala de uma etnia — explica Cleiton Silveira, arqueólogo e diretor do Marsul. — Na arqueologia, é difícil cravarmos a origem exata de um vestígio encontrado, mas temos como identificar marcadores que ajudam a construir a história de cada peça. E é interessante perceber as características que os artefatos de cada etnia têm, que revelam as diferenças de cada cultura, além daquilo que todos conservam em comum — comenta.
Formada inteiramente por peças que remetem aos povos originários, a exposição cumpre um papel importante ao valorizar a raiz indígena do Estado. Algo que, para a arqueóloga Luísa D'Avila, servidora do museu, acaba sendo negligenciado pela historiografia oficial do Estado:
— Temos pelo menos 12 mil anos vida humana no Rio Grande do Sul. É importante destacarmos isso, para entendermos que a nossa história não começa pela chegada do europeus. Muito antes disso, nós já tínhamos povos indígenas vivendo aqui, produzindo conhecimento, cultura e tecnologia. Olhar para o modo de vida deles pode nos ensinar muito.
Acervo significativo
Apesar da expressividade, o conjunto de peças que integra a exposição é menos de 10% do acervo do Marsul. A reserva técnica da instituição conta com mais de 1 milhão de peças, que estão acondicionadas em caixas plásticas e de papelão distribuídas ao longo de dezenas de prateleiras. Nelas, há material para incontáveis configurações de exposições.
A dimensão exata do atual acervo do Marsul ainda é incerta, porque o trabalho de catalogação dos objetos foi impactado pela falta de servidores que marcou a última década do museu. Estima-se que a quantidade de peças arqueológicas salvaguardadas pela instituição possa passar de 3 milhões.
Após a reabertura, o próximo passo do Marsul — que já está sendo executado pela equipe, conforme o diretor — é redimensionar a reserva técnica e qualificar a conservação das peças, cujo valor científico é incalculável.
— Há uma infinidade de aspectos que podem ser pesquisadas a partir de um acervo como o do Marsul, obtendo respostas para coisas que nem imaginamos — destaca Silveira.
— Um exemplo é a questão climática, que está cada vez mais em evidência. A partir de vestígios arqueológicos, podemos descobrir como o clima se comportava há 12 mil anos e como as pessoas se relacionavam com a natureza, para tirar lições — exemplifica o diretor, ressaltando que o Marsul também está de portas abertas para pesquisadores.
Entre as joias guardadas está o esqueleto completo de um indígena que habitou o RS há pelo menos 1.500 anos. Carinhosamente batizada de Zé, a ossada foi encontrada em Barra do Ouro, distrito de Maquiné, em 1961. Pesquisas já foram realizadas a partir do material, que fica restrito à reserva técnica do museu, sem ser exposto.
Além de vestígios encontrados no RS, o museu possui materiais arqueológicos provenientes de Santa Catarina, Mato Grosso, Rondônia e Amazonas. A maior parte foi coletada em expedições lideradas pelo taquarense Eurico Miller. O professor da rede estadual e arqueólogo autodidata foi responsável pela fundação do Marsul, em 1966, e teve influência na profissionalização do campo da Arqueologia no Estado.
Nos primeiros anos, a instituição funcionou na própria casa do pesquisador, reunindo os itens descobertos por ele em empreitadas arqueológicas iniciadas ainda na década de 1950. Em 1977, o museu inaugurou sua sede atual, em um terreno de 2 mil hectares que foi doado pela prefeitura de Taquara.
O espaço amplo é um atrativo a mais ao público, que além de visitar a exposição, pode usufruir da área verde do museu para piqueniques e outras atividades. Uma delas pode ser brincar com a mascote oficial do museu, a vira-lata Brunida. Com o pelo preto e brilhante, a cachorra ganhou esse nome por causa da técnica brunidura, realizada pelos povos indígenas para escurecer e dar brilho às cerâmicas.
— O que mais queremos é que as pessoas ocupem esse espaço, tragam a família, brinquem com a Brunida e sintam que o museu também é delas. Ainda estamos no processo de desvincular aquela imagem de um Marsul decadente e abandonado, e o apoio da população é fundamental — afirma o diretor.
Museu Arqueológico do RS
- O Marsul fica localizado na Avenida Sebastião Amoretti, 6.310, em Taquara, no Vale do Paranhana
- A instituição está aberta de segunda a domingo, das 9h às 16h, e tem entrada gratuita