
Airton Tomazzoni (*)
A dança de Porto Alegre ainda espera o devido entendimento da sua história ao longo do século 20, especialmente ao que se refere à relação que a produção local teve com os preceitos da arte moderna. Isso se deve muito pelo fato de que essa relação foi ofuscada pela hegemonia do balé, por aqui consolidada a partir da década de 1930. Contudo, a gênese da dança cênica na capital gaúcha em meados da década de 1920 não começa sob a insígnia do legado clássico. É no forte contorno modernista do Instituto de Cultura Física que as jovens Lya Bastian Meyer, Tony Seitz Petzhold, Irmgard Hofmann Azambuja e Salma Chemale são formadas como artistas e professoras.
A matriz dessa primeira escola, dirigida por Mina Black e Nenê Dreher, trouxe a base da vanguarda europeia com os fundamentos estéticos modernistas de Emile Dalcroze (1865-1950), criador do método da eurritmia. Essas aulas primavam pela formação estética do corpo e sua expressividade em relação à música, muito mais livre e ampla do que o modelo balético propunha. Antes que os princípios rígidos da dança clássica chegassem à Capital, foi nessa exploração dos estudos de movimentos, com exercícios de improvisação e experimentação, que a arte dessa dança surge. As alunas exercitavam uma nova corporeidade, treinavam em maiôs de ginástica que não escondiam seus contornos, lançavam-se no espaço em túnicas esvoaçantes e em movimentos impregnados de liberdade.
Esses preceitos logo teriam influência da dança expressionista da Alemanha, onde Lya e Tony iriam estudar na década de 1930, trazendo um novo imaginário feminino preconizado por nomes como Mary Wigman, que não se restringia ao de frágeis donzelas ameaçadas, esposas recatadas e caseiras.
Não à toa, Lya Bastian Meyer criou com forte marca expressionista o balé Joana D'Arc (1948), resgatando a figura da herege personagem atormentada que lidera um exército e é condenada à morte. Tony Petzhold interpretou, por sua vez, Teiniaguá, em A Salamanca do Jarau (1945), num figurino antológico com uma enorme cauda do lagarto encantado, que com certeza impôs um grande desafio à bailarina para mover-se com outros padrões coreográficos, numa performance que ganhou destaque da crítica na época. Todas foram criações de dança que buscaram romper com os padrões de arte e mesmo de representação feminina da época, como fez a montagem de A Princesa Moura em 1930, com Salma Chemale incorporando a sedutora e voluptuosa Sherazade de As Mil e Uma Noites.
Além de personagens arrojadas, elas assumiram à frente da produção cultural, mantendo suas escolas, dirigindo suas encenações e até criando novos circuitos como fez Irmgard Hofmann, levando essa dança moderna a várias cidades do Interior.
Ao mesmo tempo, essas artistas colocaram em cena o que era, de certa maneira, uma vanguarda musical, não se limitando a um repertório romântico consagrado nas criações clássicas. Isso fica evidente nos solos de Irmgard ao som de Claude Debussy e Francis Poulenc, apresentando-se em várias cidades. Esse time de compositores também aparece em espetáculos como El Amor Brujo (1937), com música de Manuel de Falla, coreografado por Lya, ou em obras de Tony, como Pavane pour une Infante Defunte (1945), com música de Maurice Ravel, e La Sacre du Printemps (1953), com música de Igor Stravinsky.
Por isso, a exposição Modernas Eram Elas traz a público os rastros dessa história, reunindo fotografias inéditas, programas de espetáculos, material de imprensa, peças pessoais dessas mulheres, depoimentos de artistas que elas formaram, entre outros documentos raros. A exposição que será aberta no dia 22 de setembro, no Goethe Institut Porto Alegre, dá acesso a esse passado, sendo a primeira ação do projeto Memória da Dança POA, do Centro Municipal de Dança. A iniciativa pretende fazer um resgate desse período e mostrar que essa geração de artistas foi mais do que um grupo de exímias bailarinas. Elas foram também mestras que formaram importantes nomes que atuaram no Brasil e no Exterior ou ainda atuam, empreendedoras sagazes, hábeis produtoras e criadoras inventivas, longe da agitação cultural do centro do país. Foram elas que, em meio a contradições e desafios do seu tempo, estabeleceram um quase desconhecido e silencioso movimento moderno, porém marcante e inovador para a cena local.
(*) Pesquisador, jornalista e diretor do Centro Municipal de Dança da SMCEC
A exposição
Modernas Eram Elas: A dança na Porto Alegre da primeira metade do século 20. Em cartaz no Goethe Institut Porto Alegre (Rua 24 de Outubro, 112), de 22 de setembro a 29 de outubro, com visitação de segundas a sextas, das 9h às 19h, e aos sábados, das 9h às 13h.