Por Fernando Neubarth
Médico e escritor
Há lembranças que guardam a um tempo a sensação de perenidade e o fugaz. O giro inevitável das horas e a constância, algo mágica algo acolhedora, dos ciclos, das marés, das arribações. Esse calor extemporâneo de agosto saúda as andorinhas que vejo através da janela e a teimosia leal das flores do marmeleiro japonês, em sua singela beleza. Lá fora, também o vírus, silencioso, solerte, ameaça entre tantas, que, também recorrentes, bloqueiam respiros, sufocam aspirações, desejos. Há braços que se fortalecem e se levantam em infames saudações enquanto vigora contido o exercício pleno dos abraços.
Releio A Dama do Saladeiro, que Cyro Martins escreveu em 30 dias, nas férias de fevereiro de 1980, na praia de Atlântida. Histórias vividas e contadas, como ele mesmo apresenta: “Encontro com gente, com paisagens, com fatos históricos e rotineiros, com as mil miudezas que tramam a vida e com os faz-de-conta, os silêncios e os murmúrios que ficaram acampados lá longe dentro de nós, à espera paciente da hora deste rodeio de lembranças”.
Não é objetivo, nem teria a pretensão, de discorrer a importância de Cyro Martins para a literatura e a desmistificação de uma visão excessivamente idílica e façanhosa. O centauro dos pampas ainda se reflete na superfície de uma sanga onde as flores dos espinilhos sabem a narcisos e embriagam as gentes com seu melífluo aroma, particularmente nessa época. O menino, eternamente a caminho do colégio, apontou a nudez do rei. Mas mesmo hoje sublimam-se os desgarrados, invisíveis, apeados monarcas.
O “corte de vida”, escolhido pelo autor para os relatos reunidos em A Dama do Saladeiro, passados 40 anos de sua publicação, reveste-se de maior força de recomendação à leitura, sobretudo pela profusão de questionamentos, de certezas dúbias e convicções baseadas em má-fé ou até em desespero. Ao apresentá-lo, o professor Carlos Jorge Appel, seu editor e amigo – responsável, diga-se por reconhecimento devido, não só por uma editora, mas por um real e inconteste movimento literário – destaca nessas narrativas aquilo que Camões chamou de “um saber de experiências feito”. Ainda segundo Appel, Cyro Martins parte “de detalhes por vezes quase imperceptíveis, mas importantes no desvelamento das raízes e motivações do ser humano”.
O livro abrange os três últimos anos na faculdade de Medicina em Porto Alegre e os três primeiros de formado, no Interior, na fronteiras geográfica, do sul, e histórica, início dos anos 1930. Natural de Quaraí, escritor, médico psicanalista, Cyro Martins nasceu em 5 de agosto de 1908 e evocações da infância e desse período se entremeiam, com o distanciamento permitido pela privilegiada lente da experiência de quem teve as relações humanas como foco de observação analítica e, principalmente, generosa.
Não só os jovens, mas esses sobretudo, devem encontrar ressonância em muitas indagações do moço que também experimentava iniciações e muitas dúvidas em relação ao futuro. Preso às circunstâncias, não pode viver as pompas de uma formatura festiva e solene por não ter posses para mandar fazer um terno de linho branco e retornou para as suas lonjuras para começar sua trajetória como médico, fazendo o que lhe coube, atender a “clínica dos três pês”: parentes, pobres, putas.
Ainda no prefácio, Cyro Martins afirma não gostar “da palavra ‘memórias’”, porque evoca “uma tonalidade sombria de sentimentos”. Prefere as que “comunicam o calor da vida”, que “estimulam a folhear o livro que amanhece todos os dias”. Em meio a tantas incertezas, essa metáfora para a eterna luta cotidiana soa como estímulo, terno compromisso solidário.
Cyro Martins afirma não gostar da palavra 'memórias', porque evoca 'uma tonalidade sombria de sentimentos'. Prefere as que 'comunicam o calor da vida', que 'estimulam a folhear o livro que amanhece todos os dias'.
A vívida descrição de um primeiro parto à fórceps em Mãos Amigas do Próximo é mais do que uma peça literária, parece conduzir o leitor à uma experiência metafísica, junta-se aí não o médico e o monstro, mas o “doutor Cyro – psicanalista” e o tremendo escritor. É como se o “Tuco”, aquele empregado da viação-férrea, um guarda-trilhos, responsável pela exploração da estrada antes da passagem do trem, que aparece no início do relato, viesse avisar que embarcaríamos num vagão de montanha russa. Tudo é angústia, é temor pelo fracasso, a tempestade lá fora, a expectativa nos gestos do marido e futuro (?) pai, nos olhos fustigantes da parteira que “nos” chama de menino (sim, o autor nos torna cúmplices daquela iniciação), no jeito de bruxas das três mulheres que cochicham agachadas como carpideiras e na luz inquieta do candeeiro. Nos músculos retesados, no estreito desfiladeiro a ser vadeado pelo feto em sofrimento. No esgotamento da parturiente, nas cólicas, nos espasmos, nos ferros postos a ferver num panela, no estrondo do trovão em justo e impróprio momento do engate das pinças. Renascemos todos dessa experiência, melhores, como se resultado de uma sessão de análise e aprendemos a compreender os olhares expectantes dos nossos medos.
Fica como destaque, mas há no livro outras passagens impactantes onde se evidencia uma profunda empatia do autor para com seus personagens. Não faz julgamentos, mesmo quando os próprios se julgam, como o casal do conto Entre Médicos, que perdeu um filho degolado na Revolução de 1923.
Estive com Cyro Martins na minha primeira participação numa mesa sobre literatura entre “médicos escritores”. Algum tempo depois, encontrei-o no trajeto do lotação Rio Branco-IPA. Vinha, por certo, do consultório, estava bem à frente, o assento ao seu lado estava vago. Postura ereta, apesar da idade, aquele semblante iluminado de quem contempla auroras, sereno como um príncipe justo. Minha chance de pedir licença e entabular uma conversa tinha a exata extensão da Avenida Independência e o peso da timidez de um plebeu respeitoso. Ele desembarcou na Praça Júlio, faleceu não muito depois, no dia 15 de dezembro de 1995. Guardo aquele sorriso acolhedor com o qual respondeu ao meu cumprimento num baú de guardados, entre tantas outras notas promissórias não saldadas.
– Váyase, váyase! – diria a Dama do Saladeiro – enfrenta, segue teus sonhos.
Fico imaginando o que eu diria a ele, “rapazinho xucro”, mais ouvinte, principalmente quando vale a pena escutar. Comentaríamos sobre aquele encontro organizado pela professora Léa Masina no Hospital de Clínicas, teria me reconhecido? Estaria incomodando, afinal minhas aspirações buscavam a atenção do terapeuta ou do escritor experiente? Não daria para muita charla mesmo, talvez um chiste, uma bobagem qualquer, certamente colocaria os pés pelas mãos e eu próprio me condenaria depois. Fosse por esses dias, falaríamos da pandemia, que é do que se fala já que nem mais o clima parece importar. E da forma irresponsável com a qual os que poderiam ser mais determinantes em nada ajudam, decreta-se o descaso. Talvez pedisse emprestado, para ilustrar a conversa, os títulos da trilogia do “gaúcho a pé”, que nunca pareceram tão apropriados: Sem Rumo, Porteira Fechada e Estrada Nova. Serviriam também para nominar diretrizes de desgoverno. É o que me ocorre neste tempo de confinamento e absurdos. Adivinharia, por trás da máscara, a ironia condescendente e esperaria que me dissesse, como o bom pai à filha Maria Helena em momentos de atribulações:
– Não se preocupe, se ocupe.
Passo adiante o conselho, não deixem que passe as oportunidades do percurso e leiam; em Cyro Martins, uma boa ocupação.