Há duas semanas, Celia Ribeiro anunciou que estava se aposentando. Jornalista até a medula, Celia sempre foi referência numa infinidade de assuntos. Conhecemo-nos quando trabalhei aqui na Zero Hora. Sei que, além de todos os méritos profissionais, Celia é ainda um ser humano capaz de uma rara qualidade de afetos. Conto uma história de quando fui diagnosticada com câncer.
O tratamento para a doença na área de cabeça e pescoço, meu caso, não é dos mais confortáveis. Além de quimioterápicos, o paciente ainda recebe uma explosão atômica personalizada e dividida numas 30 aplicações. A saliva seca, as papilas gustativas são queimadas, a gengiva cai aos pedaços. O resultado foi que eu - o melhor garfo da cidade - não conseguia comer. Gordura não significa nutrição, e os amigos vinham com quitutes: biscoitos mimosos da Marô, cookies da Luísa, nhá-benta da Eliane, feijão da Rosa, purê de maçã do Jairo, coxinhas de frango da Luciana, massa da mãe, doces da Sandra, guisadinho do marido. Mas cada coisa que eu colocava na boca parecia uma bola de fogo perfurando a língua. Eu sempre acabava de joelhos tentando conter o desmaio e a dor.
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Num final de tarde, Celia bateu aqui em casa. Vinha com um pote, no qual peras cortadas em cubos, de uma tonalidade quase dourada, estavam mergulhados numa calda fina e cristalina. A compoteira era de vidro, e a transparência dava a ilusão de que aquela generosidade adocicada flutuava. Ela explicou que era uma compota que ela fazia de quando em quando e que, por ser bem levinha, talvez não me machucasse tanto.
Sem desmerecer os outros amigos, mas a compota da Celia trazia essa delicadeza, a de uma senhora que não costumava cozinhar e que se meteu na cozinha tentando amenizar a dor de uma pessoa. Com efeito, aquele foi o primeiro alimento em muito tempo que não me fez pensar no gosto da morte.
Por isso, quando ela se aposenta, lembro de tudo o que ela nos ensinou: que a maior prova de elegância é o cuidado com o outro, que a amizade é coisa finíssima e que o maior luxo do mundo é o afeto.
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